Nem toda cidade é um cartão postal

Se tem algo que me tira do sério são as imagens minuciosamente escolhidas por peças publicitárias para apresentar as maravilhas que as cidades brasileiras têm a oferecer aos turistas nas férias escolares

Por Helena Degreas
 09/07/2024 13h32 – Atualizado em 09/07/2024 13h35

Reproduçao Youtube @Visit OSLO

De forma irônica e de humor levemente ácido, a campanha parece questionar a relevância, a importância ou o potencial do local para agradar ao público

Se tem algo que me tira do sério são as imagens minuciosamente escolhidas por peças publicitárias para apresentar as maravilhas que as cidades brasileiras têm a oferecer aos turistas durante o período de férias escolares. Elas prometem a experiência da felicidade, do bem-estar e da aventura por meio de paisagens deslumbrantes com pessoas sorrindo de forma exagerada, quase falsa. Como uma marca registrada, as imagens são projetadas para lembrar emoções positivas e criar uma associação direta entre o destino e momentos felizes. Mas será que esse clichê ainda funciona? Todos nós já vimos esses anúncios. Tenho a impressão de que os criadores destes anúncios desistiram, há muito, de criar. Recentemente, assisti a uma anúncio de Visit Oslo, (NewsLab) destinado a alavancar a visitação de turistas para a cidade de Oslo, capital da Noruega, por meio de uma abordagem, no mínimo, peculiar. Atormentado pelo tédio, um morador apresenta a cidade a partir do seu olhar desanimado com as situações cotidianas que vivencia dia após dia. A certa altura, sentindo um pouco de nojo, observa pessoas animadas saltando nas águas do rio que atravessa a cidade e, pergunta-se algo como “Isso é mesmo uma cidade?” ou ainda, “não tem nada exclusivo, é tudo tão disponível…”. De forma irônica e de humor levemente ácido, a campanha parece questionar a relevância, a importância ou o potencial do local para agradar ao público.

É como se, nas palavras dos criadores da peça “anti-publicitária”, um guia turístico que, em vez de deslumbrado, mostra-se levemente entediado mostra os pontos turísticos com um suspiro, mencionando vez e outra, algumas frases como “essa é mais uma das famosas estátuas de Gustav Vigeland… se é que você se importa.” É uma abordagem que parece dizer: “Olha, sabemos que já viu milhares de fotos de lugares perfeitos. Venha ver algo real.” É uma estratégia que, “ao desafiar as expectativas, cria um contraste intrigante com as campanhas tradicionais, gerando curiosidade e interesse.” A cidade de Oslo decidiu que não queria mais esse tipo de associação para trazer turistas. Cansada de se perder na homogeneidade das campanhas tradicionais e, com uma pitada de humor, a resolveu inovar.

Fonte: newslab.no

Cidades são feitas pelas pessoas e para as pessoas ou, ainda, deveriam ser. As campanhas tradicionais tendem a ignorar a complexidade e a fragmentação das cidades, apresentando uma imagem idealizada, homogênea, parcial e, em alguns casos, chegam a vender estereótipos. Narrativas idealizadas, não necessariamente, cidades.
Campanhas turísticas tradicionais, como as do Rio de Janeiro e São Paulo, costumam destacar apenas os pontos turísticos mais conhecidos e glamourosos, como as praias cariocas, o Cristo Redentor, o Carnaval e a Avenida Paulista. Essa abordagem, embora eficaz para atrair turistas, cria uma imagem superficial e irrealista, ignorando a diversidade, as contradições e os desafios socioeconômicos presentes nessas cidades. No sentido contrário àsrepresentações idealizadas, abordagens mais autênticas, como a da campanha de Visit Oslo, buscam mostrar um retrato mais fiel e crítico da realidade urbana. Reconhecer as nuances e complexidades de uma cidade, incluindo seus problemas e desigualdades, pode gerar uma conexão mais profunda com o público e atrair visitantes que buscam experiências mais genuínas e significativas.


Afinal, as cidades são muito mais do que cartões postais e atrações turísticas. São espaços vivos e dinâmicos, marcados por contrastes e contradições. Ao abraçar essa complexidade, as campanhas turísticas podem oferecer uma visão mais completa e honesta, convidando os visitantes a explorar não apenas a beleza, mas também a alma e a identidade de cada lugar. Contar histórias envolventes que capturam a essência de um lugar e sua cultura pode ajudar a criar uma conexão emocional com os potenciais turistas. Narrativas complexas e personagens locais podem proporcionar uma visão mais profunda e interessante do destino. Apresentar um contraste entre o que é geralmente conhecido e o que é surpreendente ou desconhecido sobre um destino pode captar a atenção e desafiar preconceitos. Isso pode incluir revelar segredos locais, atrações menos conhecidas ou aspectos culturais únicos. Viajar é muito mais do que tirar fotos instagramáveis em pontos turísticos. É sobre vivenciar experiências únicas, conhecer novas culturas e se conectar com as pessoas e os lugares que visitamos. Isto é uma cidade. A imperfeição, o diferente, o inusitado não são apenas aceita e toda a experiência vivenciada, é celebrada.

Cada cidade, cada lugar tem uma história única para contar.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

Repensar as áreas urbanas é fundamental para buscar um equilíbrio que beneficie a todos

o que estamos perdendo ao priorizar o armazenamento de veículos particulares no meio da cidade em detrimento do espaço que pode ser utilizado pelas pessoas?

  • Por Helena Degreas em 17/10/2023 14h55 – Atualizado em 17/10/2023 15h14
    Texto original aqui

John Matychuk/UnsplashVisão aérea de um estacionamento

Ao visitar shopping centers, supermercados ou prédios públicos construídos no século passado, invariavelmente notamos a vastidão dos estacionamentos, extensas áreas pavimentadas que se estendem por hectares

Aguardando no ponto, a chegada do “busão”. São oito paradas até o shopping center onde deixarei meu relógio “cuco” para conserto. Datado de 1940, herança do meu pai, vez ou outra o passarinho emperra, insistindo em não piar a hora certa. Ricota e Chanel não gostam dele. Observam ansiosas o momento em que acidentalmente o pássaro sem penas distraidamente cai ao chão para que, finalmente, possam destroçá-lo. Desço no canteiro central. Entre eu e o shopping, existem alguns obstáculos a vencer: subir pela escada rolante quebrada, percorrer uma ponte coberta, descer pelo elevador ou pela escada para assim, chegando na calçada, deparar-me com um portãozinho extremamente pequeno, que me leva à entrada triunfal do edifício, depois de atravessar uma pista dupla interna destinada à circulação de veículos de carga e descarga. Acesso meu destino. Por dentro, iluminação adequada, ar-condicionado, gente andando de lá para cá freneticamente. Templo de consumo com ausência de identidade. Todos iguais, caixotes de vidro ou concreto, não importa o ornamento externo, têm em comum o fato de armazenarem veículos estacionados em volta de suas instalações. “Para que tanto estacionamento? Não é mais fácil vir de ônibus ou pedir transporte por aplicativo?”, pergunto-me.

Ao visitar shopping centers, supermercados ou prédios públicos construídos no século passado, invariavelmente notamos a vastidão dos estacionamentos, extensas áreas pavimentadas que se estendem por hectares, consumindo terra que poderia ser utilizada para propósitos mais nobres. Essas extensões de concreto comprometem não apenas a paisagem urbana, mas também causam impactos ambientais significativos, pois absorvem calor durante o dia e liberam-no à noite, contribuindo para o fenômeno das “ilhas de calor”, que elevam a temperatura das cidades. Além disso, o escoamento da água da chuva sobre o asfalto também pode causar problemas de drenagem e a contaminação do solo por óleos e outros resíduos de veículos. No Brasil, os shopping centers têm uma forma que remonta aos modelos norte-americanos, frequentemente localizados em áreas suburbanas, uma herança das cidades modernistas. Após a Segunda Guerra Mundial, houve um rápido crescimento dos subúrbios nos Estados Unidos, impulsionado pela busca de residências próprias a preços acessíveis e pelo desenvolvimento de infraestrutura viária, tornando os locais ideais para empreendimentos com grandes estacionamentos.

O princípio subjacente a essa abordagem é fortemente influenciado pelo “zoning“, que exigia a construção de estacionamentos em novos empreendimentos comerciais e residenciais, refletindo a dependência do carro, uma característica marcante da cultura estadunidense. Para quem assiste filmes e seriados de TV que mostram o estilo de vida nos Estados Unidos, “Desperate Housewives” e “American Beauty” são exemplos que retratam as vidas cotidianas e famílias que moram em bairros onde as casas são construídas em lotes individuais, com quintais espaçosos, gramados imensos e, em alguns casos, garagens anexas. São comunidades planejadas que podem incluir áreas verdes, instalações comunitárias, escolas e shoppings centers para aqueles dependentes de carro. Em contraste com a cultura europeia, que valoriza a criação de galerias e espaços públicos de qualidade em áreas centrais adensadas, nossas cidades optaram por acolher, inexplicavelmente, um modelo de projeto inadequado para áreas urbanas com farta infraestrutura e equipamentos públicos implantados. Enquanto isso, automóveis permanecem estáticos nos vastos estacionamentos. Ao contrário de pessoas, os carros não frequentam escolas, postos de saúde, acessam transporte público, recorrem a delegacias, exploram bibliotecas ou aproveitam o acesso à água, esgoto e energia elétrica. Pedaços de cidade inteiros armazenam automóveis enquanto aqueles que residem nas regiões periféricas dos centros urbanos são excluídas do acesso aos serviços públicos essenciais e que deveriam estar ao alcance de todos.

Nos últimos anos, a visão do urbanismo vem destacando a importância dos espaços livres qualificados, ou ainda, projetados para o uso público urbano e ambiental, especialmente nas áreas centrais das cidades. Parques, praças e espaços de convívio construídos em propriedades privadas, promovem a atividade física, a interação social e colaboram na redução do estresse. Incontáveis, seus benefícios levam à promoção da saúde e do bem-estar até a construção de comunidades mais fortes e unidas como venho sistematicamente abordando em minhas colunas. São locais de encontro, celebração e diálogo. São os lugares onde a diversidade da cidade se encontra e se mistura, criando um senso de pertencimento e identidade compartilhada. No entanto, muitas vezes, essas áreas são relegadas a segundo plano pelos empreendedores do mercado imobiliário voltado à criação de shoppings, supermercados e até pelas prefeituras locais. Não raro é encontrar prédios de secretarias, assembleias, departamentos diversos voltados ao atendimento da burocracia pública cercados de estacionamentos e inseridos em ambientes urbanos onde o transporte público é capaz de atender com qualidade seus colaboradores. O poder público e seus agentes, que deveriam dar o exemplo, eximem-se da responsabilidade de dar destinação adequada aos espaços ociosos ou que servem exclusivamente aos proprietários de carros.

A requalificação de áreas urbanas em benefício do espaço público não significa o fim dos carros ou da conveniência. Pelo contrário, representa uma oportunidade de repensar a alocação dos espaços e buscar um equilíbrio entre mobilidade, meio ambiente e qualidade de vida. Os estacionamentos ainda têm seu papel, mas é fundamental que empresas, sociedade e governos priorizem a criação de espaços urbanos de qualidade e que beneficiem a todos. Faz-se necessária a revisão das regulamentações urbanas e a eventual taxação para áreas de estacionamento a céu aberto em locais intraurbanos, pois não tem sentido algum que todos paguem por uma infraestrutura pública ociosa. À medida que exploramos alternativas para o futuro, é essencial considerar o potencial das áreas atualmente dominadas por veículos. A redefinição do espaço urbano, priorizando as pessoas em detrimento dos veículos, é essencial para uma cidade mais sustentável e habitável. Além disso, exemplos inspiradores de transformações urbanas centradas nas pessoas, como Medellín, Copenhague, Paris e Singapura, mostram que é possível criar ambientes urbanos mais humanos, saudáveis e vibrantes utilizando investimentos voltados para a ampliação da mobilidade ativa, do transporte de qualidade e do adensamento urbano por meio de políticas habitacionais que incentivem a diversidade social, além da retirada do asfalto para fins de permeabilização urbana. O desafio do planejamento urbano contemporâneo reside na conciliação das duas visões: a modernista e a pós-moderna, em uma abordagem integrada que repense o uso de áreas urbanas.

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan

Não adianta só fazer planos, planos e mais planos, é preciso reconstruir a biodiversidade nas cidades

Nas 14 primeiras semanas deste ano, Brasil atingiu 3,1 milhões de casos prováveis de dengue e 1.292 mortes; inércia das autoridades, visão limitada do problema e a busca desenfreada por lucros criam um cenário caótico

JOSE LUCENA/THENEWS2/ESTADÃO CONTEÚDOFumacê para combate ao mosquito transmissor da dengue no entorno do Hospital Estadual Alberto Torres, em São GonçaloAção de conscientização para o combate à dengue em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro

Matéria recente publicada pelo Worl Economic Forum, intitulada Every Decision is a Climate Decision (Cada Decisão é uma Decisão Climática) destaca uma série de “anormalidades globais” que vem ocorrendo nos últimos anos em todo o planeta. Inundações devastadoras, ondas de calor brutais, secas prolongadas e incêndios florestais descontrolados marcaram o ano de 2023 e tornaram-se cada vez mais frequentes e intensos, causando perdas humanas, danos materiais e impactos socioeconômicos devastadores. Consequência direta da perda de biodiversidade provocada pela interferência humana, o desequilíbrio ambiental gera impactos materiais e riscos diversos à vida e saúde das pessoas. Proteger todas as espécies de seres vivos do planeta ou, ainda, a biodiversidade terrestre, especialmente em áreas urbanas, é uma tarefa urgente, de caráter global, e que requer ação imediata de governos, empresas e pessoas. O Conselho Nacional da Saúde (CNS) apresentou estatísticas, em publicação recente, informando que, em 2024, o Brasil enfrentará a pior epidemia de dengue dos últimos anos. E dengue pode matar.

Dados divulgados pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) apontam que o Brasil atingiu 3,1 milhões de casos prováveis de dengue nas 14 primeiras semanas deste ano e 1.292 mortes causadas pela transmissão do vírus, enquanto 1.875 estão sob investigação. Embora complexa, existe uma relação entre a destruição da biodiversidade urbana e as alterações climáticas. Com o aumento da temperatura e eventos climáticos extremos, como chuvas intensas, criam-se condições mais favoráveis para a reprodução dos mosquitos. O crescimento urbano desordenado, com ausência de planejamento adequado, resulta em precariedade na provisão de infraestrutura de saneamento básico, levando à formação de áreas propícias à proliferação, como locais com acúmulo de lixo e falta de drenagem adequada. Tratar futuros surtos e epidemias que ocorrem nas cidades demanda bem mais do que tentar eliminar o foco do mosquito transmissor por meio de campanhas de educação da população e fiscalização. Embora a educação seja crucial para conscientizar as pessoas sobre sua responsabilidade na redução da proliferação do mosquito, é igualmente vital reconsiderar a importância da reconstrução da biodiversidade nas cidades.

Planos, planos e mais planos voltados a soluções pontuais proliferam em guichês e secretarias municipais, como se a simples redação de seu texto tivesse o poder de garantir os resultados e benefícios planejados. Se por um lado sua existência apresenta um esforço dos agentes públicos para alinhar-se ao cumprimento das metas da Agenda 2030, por outro, a descarbonização urbana enfrenta um hiato gritante entre a intenção e a ação. A inércia das autoridades, a visão limitada do problema e a busca desenfreada por lucros imediatos por alguns setores criam um cenário caótico, onde a efetividade das políticas e ações urbanas se perdem em meio à burocracia e à falta de compromisso, dificultando respostas rápidas e eficazes às mudanças socioambientais. A falta de coordenação entre diferentes órgãos, com conflitos de interesse e duplicação de esforços, gera atrasos, desperdício de recursos e desigualdade na distribuição de investimentos. É urgente a adoção de uma abordagem integrada e colaborativa, envolvendo todas as partes interessadas, para garantir a preservação da biodiversidade urbana.

É neste contexto que o Índice de Biodiversidade de Cingapura (SI) surge como uma ferramenta complexa que, ao abranger 28 categorias de análise, pode, por meio da mensuração e monitoramento, não apenas fornecer uma visão abrangente do estado da biodiversidade, mas também, colaborar na formulação de planos e políticas urbanas eficazes, servindo como base sólida para decisões estratégicas e ações direcionadas por meio da coleta, análise e utilização de dados. Como medir e monitorar a eficácia do que vem sendo feito por governos para recuperar a biodiversidade urbana e melhorar a capacidade de uma cidade de resistir, se adaptar e se recuperar dos impactos ambientais provocados pelas mudanças climáticas? Desde a adaptação às mudanças climáticas até a resiliência urbana, passando pela gestão de recursos naturais e o controle de espécies invasoras, é necessário construir métricas e, principalmente, dados capazes de fornecer um panorama detalhado das estratégias e políticas implementadas para melhorar as condições ambientais e climáticas, com o objetivo de proteger a saúde e a vida dos cidadãos. Isso colaboraria para a construção de um futuro no qual surtos e epidemias de doenças geradas por insetos, por exemplo, sejam reduzidos significativamente.

Ao examinar questões como participação pública, educação ambiental e infraestrutura verde, o índice busca promover a colaboração entre entidades públicas, privadas e da sociedade civil, visando garantir um ambiente urbano mais sustentável e resiliente para as gerações futuras. Além das categorias de análise mencionadas anteriormente, o índice de biodiversidade urbana também aborda temas como a conservação de habitats naturais, a proteção de corredores ecológicos, a promoção da agricultura urbana, a preservação de áreas de recarga hídrica e a mitigação dos impactos da urbanização na fauna e flora nativas. Essas adições ampliam ainda mais a compreensão e a abordagem holística para lidar com os desafios da biodiversidade nas cidades, incentivando a implementação de políticas e práticas mais eficazes para a proteção do meio ambiente urbano. As cidades, apesar de ocuparem apenas 3% do território, concentram grande parte da população e do consumo, excedendo os limites do planeta. A reorganização do planejamento ambiental nas cidades com foco na recuperação da biodiversidade associado à adoção de métricas para a avaliação e monitoramento do impacto das estratégias adotadas por governos, sociedade e setor econômico, e sua eficácia frente às questões de resiliência urbana, são fundamentais para a garantia um futuro sustentável para todos.

Veículos de grande porte devem pagar uma taxa adicional para estacionar em áreas centrais da cidade?

Coluna publicada na Jovem Pan News em 10.04.2024

Fonte: Jovem Pan News

Recentemente, em Oxford, na Inglaterra, uma medida polêmica foi implementada, propondo ajustar as taxas de estacionamento rotativo nas áreas centrais da cidade de acordo com o tamanho do veículo, afetando especialmente os proprietários de SUVs (Sport Utility Vehicle) e outros veículos de grande porte.

Essa iniciativa segue o exemplo de Paris, onde a maioria dos eleitores apoiou o aumento dos preços de estacionamento para veículos maiores nas Zonas de Emissões Baixas. Além das questões financeiras, a justificativa se estende ao fato de que veículos maiores ocupam mais espaço, contribuem para o congestionamento urbano, têm maior potencial de causar danos e mortes em colisões, geram mais desgaste nas ruas, poluem mais o ar (quando não elétricos) e aumentam o ruído, afetando a qualidade de vida de todos os cidadãos. Em Londres, por sua vez, foi implementada em 2019 a Ultra-Low Emission Zone (Ulez), estabelecida pela Autoridade de Transporte de Londres (TfL) para melhorar a qualidade do ar, reduzindo as emissões de poluentes dos veículos que circulam na área designada. Esta medida segue os critérios das normas EURO da União Europeia, que definem limites de emissão de poluentes para veículos novos, com o objetivo de promover a produção de veículos com o uso de tecnologias mais limpas. Desde os anos 90, essas normas têm se tornado cada vez mais rigorosas, abordando diversos tipos de poluentes, como óxidos de nitrogênio, partículas, hidrocarbonetos e monóxido de carbono. A Euro VI, introduzida em 2013 para veículos pesados e 2014 para veículos leves, estabelece limites ainda mais baixos, estimulando tecnologias avançadas de controle de emissões. Essas medidas não apenas contribuem para a redução da poluição, mas também impulsionam a inovação em direção a uma mobilidade mais sustentável, protegendo a saúde pública em toda a Europa. O importante é que

Diversos exemplos inspiradores ao redor do mundo ilustram o compromisso global de gestores públicos, empresas e populações em promover cidades mais limpas e saudáveis, alinhadas com as metas da AGENDA 2030. Em Madrid (Espanha), uma Área de Emissões Baixas foi estabelecida em 2018, proibindo a entrada de veículos mais poluentes nas áreas centrais. Na Cidade do México (México), uma Zona de Restrição Veicular foi implementada em 1989, restringindo a circulação de veículos em dias específicos com base no número da placa. Em Milão (Itália), a adoção de uma Zona de Tráfego Limitado em 2008 limitou a entrada de veículos em áreas históricas durante certos horários. Em Oslo, Noruega, uma área de restrição de emissões foi introduzida em 2017, proibindo a entrada de veículos a diesel mais antigos em algumas áreas. Estocolmo (Suécia), optou por uma taxa de congestionamento em 2007, cobrando dos motoristas para entrar na área central da cidade durante os horários de pico. Enquanto isso, Pequim (China), enfrenta a poluição do ar com zonas de restrição de emissões e rodízio de veículos, com medidas mais rigorosas em períodos de alta poluição.

Limitar o número de vagas de estacionamento disponíveis para SUVs e demais veículos de grande porte em áreas públicas pode ser uma medida eficaz para priorizar espaços para veículos menores e modos de transporte mais sustentáveis, como bicicletas e transporte público reduzindo as emissões de CO2 associadas ao transporte, mas também promove uma distribuição mais equitativa do espaço urbano, beneficiando toda a comunidade.

Os impactos positivos dessas políticas na melhoria climática e na redução de CO2 nas áreas urbanas são significativos. Num primeiro momento, a redução do consumo de combustíveis fósseis decorrente da menor circulação de SUVs nas ruas leva a uma diminuição das emissões de gases de efeito estufa, contribuindo para conter as mudanças climáticas. Além disso, menos veículos de grande porte nas vias resultam em menos congestionamento, o que reduz o tempo que os carros ficam parados e emitindo poluentes. A transformação de vagas de estacionamento em áreas verdes e permeáveis como vem ocorrendo nos últimos 10 anos em Buenos Aires (Argentina), contribui não apenas para captar as águas pluviais, sombrear as calçadas, prover novos locais para descanso, reduzir a sensação térmica pela requalificação de áreas públicas, mas também para promover a biodiversidade urbana e alcançar as metas para descarbonização urbana ou, ainda, colaborar no processo de redução das emissões de carbono nas áreas urbanas, visando mitigar as mudanças climáticas.

Para que a proposta de taxação diferenciada de estacionamento e circulação de veículos grandes, como SUVs, obtenha sucesso, é essencial abordar a possível oposição da indústria automobilística. Diálogo e medidas para mitigar impactos na cadeia produtiva são cruciais, incluindo incentivos à produção de veículos mais eficientes, programas de reciclagem e criação de novas oportunidades de emprego como estratégias viáveis.

As iniciativas ao redor do mundo refletem um esforço global para criar cidades mais limpas e saudáveis para todos. A implementação de políticas que priorizam o espaço urbano de forma equitativa, como a taxação diferenciada de estacionamento para veículos grandes, como SUVs, e a intensificação da fiscalização visando o cumprimento das normas ambientais, são passos importantes nessa direção. Essas medidas não apenas contribuem para a redução das emissões de CO2, melhoria da qualidade do ar e colaboram no combate às mudanças climáticas, mas, também, geram receita para investimentos em infraestrutura urbana e transporte sustentável, promovendo uma distribuição mais justa do espaço urbano e beneficiando, portanto, toda a população.

Até turistas são afetados quando espaços públicos de uma cidade perdem sua autenticidade

Dia desses, observei a decepção de dois casais de fora ao não encontrarem a confeitaria que tanto amavam; episódio ilustra como a homogeneização da paisagem impacta não apenas os moradores

Por Helena Degreas 09/03/2024 08h00 – coluna originalmente publicada para a JovemPanNews

Turistas de Porto Alegre posam para foto em frente à Catedral da Sé, no centro de São Paulo – VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO CONTEÚDO

Saio pouco de casa. No passado, nem tão distante, costumava ter quatro ou cinco compromissos ao longo do dia, em decorrência de uma rotina que me impus, seja pelos diversos empregos, seja pelas atividades triviais e cotidianas relacionadas à vida. Para me deslocar, usava o carro, privilégio de poucos, confesso. Ao longo dos anos, por prescrição médica, virei andarilha. Perfeita flâneur, desenterrei meu lado bisbilhoteiro e descobri-me enxerida nata. Ouvir a conversa dos outros é, para mim, abrir a caixa de Pandora: eu não consigo imaginar a surpresa que me aguarda nas conversas entre desconhecidos.

Dia desses, vejo dois casais parados em frente a uma longa fileira de tapumes. “Não tem nada aí para olhar”, pensei, “o que estarão fazendo?”. Cheguei mais perto. “Mor… cadê aquela confeitaria gostosinha? Não é aqui?”. “Ué” diz o moço, “não entendi. Acho que a gente errou o lugar”. O outro casal: “Não… tenho certeza, é aqui sim… é do lado daquela loja fechada que a gente comprou uns artesanatos, lembra? Parece que andaram cortando as árvores grandes também”. Suspirando, a outra moça reclama: “Não é mais o lugar que a gente vinha pra conversar. Vão construir prédio”.

“Claramente turistas”, pensei. Os dois casais se afastaram em busca de algum lugar que lhes proporcionasse a mesma sensação boa da tal confeitaria. Identidade do lugar e memória afetiva seriam as expressões que, numa sala de aula, utilizaria para explicar a situação de conforto, felicidade e prazer vivenciado em bons momentos e lembranças que acontecem em espaços públicos, na rua, na praça, no parque, na praia. As duas confeitarias destacavam-se pelo doces artesanais. Nada excepcional. Eu mesma parava, vez e outra por ali, para tomar um simples capuccino, que nem era tão bom assim, por um par de horas, simplesmente para ver pessoas, ouvir conversas alheias e colocar meus pensamentos em ordem. Respirar, enfim. O fato é que não eram franquias que vendem tudo igual em qualquer lugar e, também, não exibiam nenhum ranqueamento 5 estrelas nas paredes. O “chef”, basicamente, era o proprietário do estabelecimento que pensava assar bons bolos, doces e biscoitos. Por décadas, fez isso e vendeu muito com suas receitas. Deixou muita gente feliz. Eu era uma delas. Os dois casais também.

Concordo com as palavras da pesquisadora. Quando os espaços públicos perdem sua autenticidade, aquilo que os torna únicos, tornando-se genéricos e estandardizados, a atração para turistas em busca de vivências únicas é comprometida. Isso resulta em uma diminuição do potencial turístico dessas áreas, afetando negativamente toda a economia local que depende desse fluxo de visitantes em busca de autenticidade cultural. Não sei o nome das pessoas com as quais compartilho as experiências cotidianas durante minhas andanças por aí, mas conheço-os, entendo seus hábitos, reconheço suas roupas e, em alguns casos, compartilho rotinas e lugares onde faço compras, ajusto roupas, conserto sapatos, faço mercado, tomo sorvete, compro pão ou desembraço os pensamentos enquanto tomo um café. Agora não mais. Turistas e eu, moradora, estamos sofrendo a perda sistemática de nossas memórias afetivas vinculadas ao lugar em que estamos quer como moradores, quer como visitantes que desejam conosco compartilhar hábitos e costumes locais. Peculiaridades essas que enriquecem tanto a vivência quanto a experiência urbana.

Políticas públicas de alcance global e generalista, desvinculadas da realidade local, resultam frequentemente em ações locais desastrosas. Isso conduz a perdas irreversíveis de espaços tradicionais, descaracterizando trechos da cidade e bairros inteiros, prejudicando não apenas o que é visível, mas também o tecido social e sua cultura material e imaterial, elementos que definem cada comunidade. 

E, para definir uma comunidade, a colaboração, como mencionei na coluna passada, depende da atuação no processo de envolvimento para a criação e produção dos diversos stakeholders ou, ainda, associações de bairro, coletivos, comerciantes, organizações não governamentais junto com governos e empresas para criar políticas que identifiquem as qualidades locais e que podem contribuir para o desenvolvimento econômico. Trata-se de um processo trabalhoso que envolve a atuação constante, sistemática e permanente dos agentes públicos que ocorre por meio da realização de consultas públicas, workshops e reuniões de trabalho contínuas que só terminam com um consenso de todos os envolvidos. Estas ações são indispensáveis para definir de ações e estratégias que irão aprimorar a qualidade da vida dos que residem e, a partir daí, destacar as peculiaridades que fazem daquele lugar, daquela esquina ou daquela rua, únicos. Apenas desta forma a mitigação de problemas resultantes do processo e transformação podem ser acordadas por todos.

A recente experiência de um casal de turistas, buscando em vão uma confeitaria querida, ilustra como a homogeneização da paisagem e a descaracterização de espaços públicos que conferem vida à cidade afetam não apenas os moradores, mas também os visitantes em busca de autenticidade. A colaboração entre diversos stakeholders, incluindo moradores, comerciantes, organizações não governamentais e governos, torna-se essencial para criar políticas que valorizem as qualidades locais e contribuam para o desenvolvimento econômico, social e ambiental. Portanto, preservar a identidade local não é apenas uma questão meramente estética, mas um investimento na riqueza cultural e no bem-estar das comunidades, garantindo um futuro mais autêntico e sustentável para as cidades.

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou no Instagram: @helenadegreas

Só com a participação comunitária é possível construir cidades mais justas, resilientes e prósperas

Presença pouco representativa da população é um fator, muitas vezes, causado pela falta de conhecimento de que se pode fazer a diferença

  • Por Helena Degreas
  • 27/02/2024 09h00
  • coluna publicada no site da Jovem Pan News

Divulgação/Neighborhood 360°Organização comunitária em Nova YorkPrograma Neighborhood 360° visa revitalizar áreas urbanas de Nova York por meio da colaboração com a comunidade

Os instrumentos de gestão democrática da cidade, regulamentados pelo Estatuto da Cidade (Brasil, 2001), buscaram ampliar a participação cidadã, aproximando o poder público da população na construção urbana. Contudo, essa efetiva participação exigiu a combinação de democracia representativa e direta, modelo brasileiro que apoia a participação pública, incluindo no planejamento urbano. Mesmo com o Estatuto da Cidade e os planos diretores, muitos documentos foram elaborados alheios à realidade, tecnocráticos e, em alguns casos, autoritários, menosprezando ou suprimindo a participação popular, suas vontades e desejos, portanto. Esses planos, em muitos casos, continuam sendo peças de ficção distantes da realidade urbana, vez que a complexidade dos materiais entregues à população para avaliação apresenta-se numa linguagem técnica, de difícil compreensão para aqueles que não compartilham a linguagem e os conhecimentos de burocratas públicos. Além disso, a presença pouco representativa da população é um fator, muitas vezes, causado pela falta de instrumentos e conhecimentos para participação nas discussões ou pela descrença de que sua participação possa desencadear mudanças. Limitações de recursos financeiros e de tempo também contribuem para esse cenário, conforme destacado por vários autores que pesquisam o tema em experiências pós-Estatuto da Cidade no Brasil.

A democracia participativa no urbanismo exige também o alinhamento com a vida cotidiana da gente para promover cidades justas, inclusivas, sustentáveis e democráticas, buscando eliminar as vergonhosas desigualdades no acesso aos direitos fundamentais previstos na Constituição e no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001). Audiências, plataformas digitais, fóruns de discussões, conselhos gestores, dentre outras ferramentas aplicadas pelo poder público municipal, objetivando alcançar uma cidadania plena, não têm sido suficiente para a percepção da eficácia no atendimento das demandas da população que vê suas necessidades não atendidas quer por secretarias de governo, quer por departamentos internos, técnicos ou guichês, por exemplo. Como membro de conselhos participativos municipais, coletivos e organizações não governamentais, venho observando a necessidade de reorganização das instituições públicas municipais para os diferentes níveis de envolvimento das pessoas.

Desde o direito à informação pública e atualizada de dados referentes à gestão, existência de protocolos e até a promoção da contratualização de soluções (processo de formalização e estabelecimento de acordos ou contratos entre diferentes partes interessadas, como a comunidade local, organizações não governamentais, setor privado e o governo), o processo de participação incorpora acordos que visam implementar e executar soluções específicas identificadas durante o processo participativo. Espécie de degraus de uma longa escada a subir, essas etapas são necessárias para que projetos e ações de âmbito local se legitimem publicamente por meio da codecisão (decisão compartilhada) entre os diversos atores urbanos envolvidos, incluindo, na compactuação, a definição de responsabilidades, prazos, orçamentos e outras condições para a implementação das propostas.

Cidades como Bogotá (Colômbia), Santander (Espanha), Estocolmo (Suécia) e Nova York (EUA) incluíram em suas políticas urbanas ações práticas de participação da população objetivando a cocriação, coprodução e placemaking em trechos urbanos específicos solicitados pelos cidadãos, visando a atualização espacial, retrofit, revitalização econômica de quadras e ruas. A estrutura institucional pública foi adaptada para que os diversos grupos sociais fossem incorporados nos processos de construção das cidades.

Para viabilizar a interação e integração, os governos criaram agentes institucionais para intermediar a coprodução em áreas urbanas, por meio da coordenação entre stakeholders urbanos (qualquer entidade ou grupo, como residentes, organizações, governos e empresas, que têm interesse ou são afetados pelas decisões e desenvolvimentos em contextos urbanos). Na lista de instituições criadas, encontram-se novos Departamentos de Planejamento Urbano para formular políticas, coordenar projetos e estratégias de coprodução de âmbito local; Agências de Desenvolvimento Urbano, responsáveis pela liderança em projetos de revitalização; Escritórios de Participação Cidadã para facilitar o envolvimento ativo da comunidade; e Comissões de Desenvolvimento Comunitário para representar os interesses das pessoas. Além disso, Agências de Habitação e Desenvolvimento Social concentram-se em habitação e desenvolvimento social; Escritórios de Parcerias Público-Privadas facilitam as colaborações entre os diversos setores envolvidos nos projetos; Agências de Sustentabilidade Urbana avaliam e têm por missão integrar, como tema transversal, a sustentabilidade dos projetos propostos. Há também Agências de Promoção do Turismo Urbano, que destacam a identidade local, promovendo o patrimônio histórico, ambiental e arquitetônico em parceria com a comunidade.

Existem diversos exemplos de programas e ações colaborativas entre entes federativos e cidadãos. Embora muitos gestores públicos brasileiros ainda os considerem novidade — e a maioria da população os veja como inovadores —, a aplicação dos três conceitos na produção do espaço urbano, ocorrem há décadas e resultam em melhorias significativas na qualidade de vida.  Em 2017, a cidade de Nova York incluiu em suas políticas urbanas o programa Neighborhood 360°, visando revitalizar áreas urbanas por meio da colaboração (trabalho conjunto, portanto) com a comunidade, onde fellows (profissionais qualificados selecionados por meio de concurso público são contratados por dez meses para atuar como intermediários entre a população e o poder público e pagos pelo NYC Department of Small Business Servic – SBS) desempenham um papel crucial, viabilizando acordos e desembaraçando, por assim dizer, entraves eventualmente criados pela burocracia. Eles participam ativamente da elaboração de planos estratégicos, incentivam a formação ou revitalização de associações de comerciantes e lideram a transformação de espaços públicos, tornando-os atrativos e alinhados com as características únicas da comunidade.

Paralelamente, organizações sociais cadastradas junto ao poder público e localizadas na região de intervenção (community-based organizations – CBO) têm um papel vital no desenvolvimento social, econômico e ambiental, mobilizando a comunidade para participar ativamente do placemaking ou, ainda, o processo participativo de transformar espaços urbanos, envolvendo a comunidade na criação de ambientes vibrantes, acolhedores e significativos que atendam às suas necessidades e aspirações — “mão na massa” que leva a ações tangíveis. Essas organizações capacitam os membros da comunidade para uma participação efetiva em projetos de placemaking, promovendo uma abordagem inclusiva e colaborativa para o desenvolvimento urbano. Os recursos financeiros para o programa Neighborhood 360° provêm de fontes diversas, como orçamentos municipais, fundações privadas e parcerias público-privadas, incluindo investimentos diretos das autoridades públicas locais, patrocínios empresariais, subsídios filantrópicos ou combinações variadas dessas fontes.

A implementação da cocriação, coprodução e placemaking exige reorganização das instituições públicascriação de novos agentes institucionais e mobilização da comunidade. Diversos programas e ações colaborativas já demonstram a efetividade dessas ferramentas na revitalização de áreas urbanas e na melhoria da qualidade de vida. Se a cidade é feita por pessoas e para pessoas, a melhoria dos canais de comunicação e interação entre o poder público para a solução dos problemas de âmbito local não passa apenas pelo planejamento em escala urbana e a regulamentação genérica distante da realidade das pessoas. Ouvi-las é obrigação dos entes federativos, criando os instrumentos necessários para que a participação se dê de maneira eficaz na solução de questões locais. Só com a participação comunitária, daqueles que não apenas habitam os mesmo locais geográficos, mas também têm interesses comuns na melhoria das ruas, das praças e tantos outros assuntos, será possível construir cidades mais justas, resilientes, sustentáveis e prósperas para todos.

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou no Instagram: @helenadegreas

Calçada tem de ser vista como parte importante da vida urbana, e não como lugar de passagem rápida de pessoas

Cidades civilizadas são construídas, literalmente, a cada passo, e é na infraestrutura de mobilidade a pé que se mede o respeito dedicado à população pelas prefeituras

Por Helena Degreas 10/02/2024 08h00 – Atualizado em 10/02/2024 12h39

Gestão eficiente e reorganização de prioridades podem transformar muitos lugares inadequados em excelentes espaços públicos – Fonte: freepik

Lembrei-me do jornalista Gilberto Dimenstein e do seu hábito saudável de, literalmente “andar por aí” e descobrir coisas e detalhes que só o passo lento, o olhar livre de intenções e o prazer estético são capazes de proporcionar. Tento, em vão, manter o hábito das longas caminhadas, mas “tá difícil”, Gilberto. É sério. O descaso para com o andar das pessoas é histórico e remonta o tipo de colonização de nossas terras. Está entranhado na gestão da coisa pública. Uma visita às cidades colonizadas pelos espanhóis mostra padrões rigorosos na forma urbana impactando diretamente na qualidade da paisagem vivenciada e nas calçadas. As ruas organizadas em um padrão de grade ao redor de uma “plaza” central revelam uma estrutura planejada, onde a igreja e o governo ocupavam lugares proeminentes. Essa disposição não apenas determinava a paisagem urbana, mas também exercia influência direta na construção das calçadas públicas. Ruas largas e alinhadas continuam a oferecer espaços generosos para a circulação de pedestres, enquanto a “plaza” central, frequentemente dominada por uma igreja de estilo barroco, transformava as calçadas em locais centrais para atividades sociais e religiosas.

Separados por um oceano de distância entre os continentes, a autoridade portuguesa presenciou o surgimento de povoamentos espontaneamente originados de expansões territoriais decorrentes de atividades econômicas, como bandeiras e mineração, religiosas, militares e indígenas. As ruas, frequentemente sinuosas, e, por extensão, as calçadas, ainda hoje, se adaptaram às características dos terrenos acidentados, seguindo as inclinações e larguras possíveis impostas pela topografia natural.

Poucos são os projetos urbanos de bairros e cidades executados por prefeituras e demais entes federativos. O que vivenciamos hoje é resultado de uma abordagem mais abstrata e centralizada proveniente de um planejamento urbano por meio do uso de taxas, coeficientes, indicadores e regulações que permitem ao proprietário de lotes e glebas praticamente definir a forma final do lugar por onde andam as pessoas. Para os bairros periféricos, mais distantes das áreas centrais, a abordagem da forma urbana final é ainda mais complexa pois a ausência de regulamentações urbanas e políticas públicas de habitação secularmente frouxas no atendimento das populações, levou e ainda leva, à autoprodução de bairros em áreas urbanas que ainda hoje resultam em vielas e becos prejudiciais aos cidadãos além de caminhos de acesso informais, rotas improvisadas que conectam diferentes partes do assentamento, frequentemente sem planejamento formal, enquanto vielas e becos formam estreitas passagens entre edificações, ocasionalmente constituindo redes complexas de caminhos sinuosos.

Embora a demanda por moradia cresça exponencialmente, os projetos urbanos de bairros e cidades implementados por prefeituras e outros entes federativos desde o século XX são insuficientes. A abordagem predominante, baseada em taxas, coeficientes e indicadores numéricos, prioriza o planejamento abstrato e centralizado, relegando a segundo plano as necessidades das pessoas que vivem e circulam nas cidades. Essa lógica coloca nas mãos dos proprietários de terrenos a responsabilidade final pela forma do lugar, sem considerar o impacto social e ambiental das decisões tomadas.

A situação nos bairros periféricos apresenta uma complexidade ainda maior. A histórica negligência do Estado na regulamentação urbana e na implementação de políticas públicas de habitação levou à autoconstrução de grande parte desses assentamentos. Isso se reflete em vielas e becos estreitos, muitas vezes sem planejamento formal, dificultando o acesso e a circulação dos moradores e configurando redes complexas de caminhos sinuosos. Frequentemente, essas áreas carecem de infraestrutura básica adequada, como pavimentação, iluminação e saneamento. A inexistência e a difícil implantação das calçadas é apenas um reflexo dessa realidade desafiadora.

No projeto #UmaRuaCadaDia, o Portal Mobilize especializado no conteúdo exclusivo sobre Mobilidade Urbana Sustentável vem publicando desde o primeiro dia do ano várias imagens que retratam as diferentes realidades das ruas e calçadas do território brasileiro. Rondon (PR), Hortolândia (SP), Caucaia (CE), Rio Formoso (PE) apresentam ruas com calçadinhas de pedra, ruas de terra, com mesinhas sobre o asfalto, estreitas e com carros estacionados sobre as calçadas, um mosaico das distintas realidades brasileiras dos locais por onde caminham os brasileiros. Questões de design/projeto frequentemente não são insolúveis; uma ênfase equivocada no tráfego automotivo ou medidas de segurança excessivamente rigorosas pode ser a linha que separa o fracasso do sucesso. A gestão eficiente e uma reorganização de prioridades podem transformar muitos lugares inadequados em excelentes espaços públicos.

A infraestrutura de mobilidade a pé, englobando calçadas, pistas e travessias, é importante para a eficiência da mobilidade urbana, seguindo diretrizes dos planos de mobilidade de implantação obrigatória nas cidades brasileiras. Infraestrutura de mobilidade a pé abrange espaços viários como calçadas, pistas, canteiros centrais e travessias, incluindo elementos como calçadões, faixas elevadas, passarelas, sinalizações específicas e mobiliário urbano. A rede de mobilidade a pé opera em conexão, seguindo uma hierarquia viária para integrar elementos e fluxos de pedestres, sendo essencial para planejar e operar a mobilidade a pé de maneira eficiente. Não é um lugar de passagem rápida de pessoas. É parte importante da vida urbana.

As calçadas, em particular, são medidas da civilidade de um lugar público, sendo elementos fundamentais para consolidar laços sociais e promover qualidade de vida urbana. O espaço público transcende definições jurídicas e normas urbanísticas. Primordialmente, é um resultado do uso social, influenciado pelas variadas formas como as pessoas o ocupam e dele se apropriam. A qualidade desse espaço encontra-se na construção social e política, levando em conta os modos de utilização, os significados atribuídos, a acessibilidade e as dinâmicas sociais que o envolvem. Desta forma, as calçadas como integrantes do espaço público, emergem como uma métrica da civilidade e qualidade urbana. Ao repensarmos nossos espaços públicos, considerando usos, acessibilidade e dinâmicas sociais, podemos transformar não apenas as calçadas, mas toda a experiência urbana. Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou no Instagram: @helenadegreas

Espaços verdes urbanos para crianças têm poder transformador no desenvolvimento infantil

Espaços verdes urbanos para crianças têm poder transformador no desenvolvimento infantilInvestir na expansão e densificação de áreas verdes nas cidades é promover o crescimento saudável, garantindo o desenvolvimento pleno das próximas gerações

Jovem Pan > Opinião Jovem Pan > Comentaristas > Helena Degreas > 

  • Por Helena Degreas
  • 04/02/2024 08h00
  • coluna originalmente publicada para a Jovem Pan News

Standret/Freepik

Espaço verde urbano para crianças fortalece o desenvolvimento, incluindo equilíbrio motor, redução do estresse, melhor desempenho acadêmico e até mesmo menor incidência de problemas de saúde mental e física

Desde os primeiros dias de vida até a adolescência, as crianças podem colher inúmeros benefícios dos espaços verdes urbanos. O relatório “A Necessidade de Espaços Verdes Urbanos para o Desenvolvimento Ideal das Crianças” (título original The Necessity of Urban Green Space for Children’s Optimal Development: a discussion paper), publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), destaca os inúmeros benefícios dos espaços verdes na saúde e desenvolvimento infantil, assim como ações para melhorar o acesso a esses locais. Dentre as intervenções recomendadas, o texto defende a mobilização de grupos comunitários para reivindicar e zelar pelos seus espaços verdes locais, buscando o apoio do governo para a criação e aprimoramento de áreas verdes nas ruas, nos bairros e em ambientes escolares.

A definição do termo “espaço verde” ainda não é universal e, até o momento, não existem critérios mínimos internacionalmente aceitos para tais áreas em ambientes urbanos. Em sua essência, um espaço verde refere-se a uma porção de terra vegetada, abrangendo desde parques públicos e privados, a gramados, jardins residenciais e condominiais, calçadas, sistemas viários, playgrounds, terras agrícolas, terrenos abandonados, árvores ao longo de ruas, áreas adjacentes a estradas e coberturas verdes. Citei apenas alguns exemplos. Não cheguei a propor os espaços de água que incluem lagos, represas e orlas diversas. Fica para uma próxima coluna.

Embora observar um espaço verde pela janela seja benéfico para o desenvolvimento infantil, os benefícios aumentam significativamente quando as crianças dedicam algum tempo do seu dia para explorar, brincar, criar, relaxar e refletir dentro de um ambiente verde seguro. A configuração específica de um novo espaço verde (ou já existente) dependerá do contexto local, levando em consideração fatores como restrições de espaço, condições climáticas, influências culturais, preferências da comunidade e disponibilidade orçamentária. Isso pode variar desde a incorporação de uma simples árvore na rua até a criação de extensos parques públicos. É crucial que as crianças e a comunidade local participem ativamente e tenham suas vozes ouvidas em todo o processo de design. Estratégias para envolver as crianças incluem a utilização de modelos, desenhos coletivos e grupos focais, entre outras abordagens.

Estudos em várias partes do mundo (226 papers publicados em periódicos científicos foram utilizados como referência na redação do relatório da Unicef) destacam a correlação entre o acesso a áreas verdes e o desenvolvimento das crianças incluindo equilíbrio motor, redução do estresse, melhor desempenho acadêmico e até mesmo menor incidência de problemas de saúde mental e física. A importância da integração efetiva dos espaços verdes em ambientes urbanos densos é inquestionável e vem sendo posta em prática em diversas prefeituras.
Exemplos globais inspiradores, como o modelo de Singapura, Londres (Inglaterra), Buenos Aires (Plano BA Cidade Verde), além de Bogotá (Colômbia), mostram como é possível integrar efetivamente espaços verdes em ambientes urbanos densos. Parques, jardins em sistemas viário, redução do número de áreas de estacionamento rotativo substituídos por corredores arborizados e até mesmo telhados verdes tornaram-se partes essenciais da paisagem urbana, proporcionando oportunidades valiosas para as crianças conectarem-se com a natureza.

O documento aponta ainda alguns desafios nas questões relacionadas à facilidade com que as pessoas podem acessar e utilizar os serviços ou espaços existentes nas áreas verdes considerando as necessidades de específicas das pessoas fazendo um apelo para que as autoridades municipais ajam em resposta a esses desafios. Em muitos casos, a acessibilidade permanece como um grande desafio: distância, barreiras físicas e a falta de conscientização de pessoas e de empresas e mesmo das prefeituras limitam a capacidade das crianças, especialmente nas comunidades de baixa renda, de desfrutarem desses ambientes saudáveis. Neste momento, a atuação municipal eficaz na eliminação dos problemas por meio da escuta às reivindicações das crianças, seus principais usuários, é crucial para a transformação do local num ambiente vibrante, cheio de vida.

Destaco aqui algumas recomendações que podem servir de inspiração aos senhores prefeitos das cidades brasileiras:

  • É imperativo que os municípios incorporem espaços vegetados em todos os projetos de desenvolvimento urbano, integrando áreas de lazer, praças e parques como componentes essenciais do planejamento urbano. A acessibilidade universal, obrigatória não apenas pelo atendimento das leis e regulamentações urbanas, mas também como respeito à dignidade do cidadão, devem ser promovidas por meio da redução das distâncias e implementação de trilhas e caminhos seguros, criando corredores verdes que conectam áreas urbanas, estabelecendo uma rede verde acessível a todas as crianças;
  • Prefeitos devem lembrar-se que, embora trabalhosos na execução, o envolvimento dos usuários locais é importantíssimo no sucesso da criação dos espaços verdes por meio da participação ativa da comunidade no planejamento e manutenção de espaços verdes pois fortalece o senso de pertencimento por meio de atividades como plantio de árvores e limpeza levando à garantia de sucesso na manutenção do local. Os usuários conhecem melhor do que qualquer burocrata e tecnólogo o que importa para a melhoria do local;
  • Oferecer incentivos fiscais a empresas que adotam práticas sustentáveis, como inclusão de áreas verdes em projetos, beneficia as crianças e contribui para a saúde geral da comunidade. A promoção de zonas livres de carros e de seus estacionamento em ruas melhora a segurança e cria ambientes propícios para atividades ao ar livre, especialmente essenciais para garantir espaços seguros para as brincadeiras das crianças.

Em síntese, o relatório destaca a ligação inseparável entre cidades sustentáveis e o bem-estar das crianças, sublinhando a importância do papel desempenhado pela ação municipal na criação de ambientes urbanos propícios à saúde e ao desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes. Assegurar acesso equitativo a espaços verdes em toda a extensão da cidade, abrangendo desde as áreas centrais até as periferias, é uma responsabilidade compartilhada entre poder público, cidadãos, associações e empresas. Ao incorporar a arborização e a vegetação urbana nas estratégias de planejamento, as cidades não apenas investem no presente, promovendo a saúde e a felicidade das crianças, mas também moldam um futuro sustentável para toda a cidade. 

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou no Instagram: @helenadegreas

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

Quais são os desafios e oportunidades que nos aguardam em 2024 na busca por um desenvolvimento urbano sustentável?

Sustentabilidade, resiliência climática e inclusão social são alguns dos temas que ocuparão as manchetes dos principais meios de comunicação no ano recém-iniciado

Por Helena Degrea 06/01/2024 09h00 para a Jovem Pan News (texto original)

EDI SOUSA/ATO PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO – 03/01/2024Pedestres enfrentam a primeira chuva de verão do ano de 2024, no fim de tarde desta quarta-feira (3), na região central de São Paulo

Planejadores urbanos e gestores públicos devem preparar cidades para enfrentar e mitigar impactos dos extremos climáticos

As discussões previstas na Agenda Urbana Internacional para o ano de 2024 (e que se estenderão para a próxima década) apontam para cinco temas que ocuparão as manchetes dos principais meios de comunicação e que visam o planejamento de cidades mais sustentáveis, inclusivas e resilientes. Espera-se de gestores e técnicos públicos: 

Sustentabilidade urbana

O crescimento inevitável das áreas urbanas destaca a imperatividade dos governos investirem no desenvolvimento de políticas públicas e estratégias com ações que visam causar o menor dano possível aos ecossistemas, recursos naturais, biodiversidade e à qualidade do ar, água e solo. Ao promover políticas e práticas ecoeficientes, governos estimulam ambientes urbanos ecologicamente equilibrados e saudáveis. Investir em energias renováveis, desenvolver sistemas de transporte público integrado com a inclusão dos modais ativos e adotar políticas de gestão inteligente de resíduos são algumas das medidas concretas nesse caminho. Essas iniciativas não apenas respondem ao desafio ambiental, mas também contribuem para o desenvolvimento sustentável das áreas urbanas, garantindo uma qualidade de vida mais elevada para seus habitantes.

Resiliência climática e adaptação

Com as preocupações crescentes em relação aos impactos causados pelas mudanças climáticas que recaem sobre a população, as cidades (seus planejadores urbanos e gestores públicos) devem se preparar para enfrentar e mitigar impactos adversos. Embora afetem todos os cidadãos, os impactos recaem, sobremaneira, sobre a população mais pobre que reside em áreas distantes dos centros e cuja infraestrutura é, comumente, precária. Adaptação dos sistemas de drenagem e gestão de águas pluviais, infraestrutura de abastecimento de água e saneamento, transporte público e mobilidade urbana, parques e áreas verdes urbanas, estruturas costeiras e portuárias, redes elétricas e de energia deverá sofrer adaptações para sua eficiência e eficácia para fortalecer a resiliência das cidades diante dos desafios climáticos emergentes, garantindo a segurança e qualidade de vida dos habitantes urbanos.

Inovação tecnológica e cidades inteligentes

Avanços tecnológicos oferecem a oportunidade única de transformar as cidades em ecossistemas inteligentes a partir da integração de tecnologias emergentes, como a Internet das Coisas (IoT) e inteligência artificial, otimizando serviços urbanos e melhorando a qualidade de vida dos cidadãos. Aplicações como gestão inteligente de tráfego e transporte, monitoramento ambiental, e planejamento urbano baseado em dados, considerando padrões climáticos futuros, são algumas das diversas possibilidades que melhoram a qualidade de vida. O uso inteligente de água com integração de sensores para monitoramento do consumo em tempo real, sistemas de irrigação adaptáveis às condições climáticas, gestão inteligente de resíduos por meio da implementação de sistemas de coleta de lixo que otimizam rotas com base na demanda, reduzem a emissão de poluentes. A mobilidade sustentável e sistemas de transporte, quando conectados e interativos, oferecem informações por meio de aplicativos e plataformas em tempo real sobre transporte público, permitindo aos cidadãos planejar rotas eficientes e reduzir a dependência de veículos individuais, contribuindo para a redução das emissões de carbono. Outo exemplo é a gestão eficiente de redes de energia com a implementação de redes elétricas inteligentes que ajustam automaticamente a distribuição de energia com base nas demandas sazonais e das condições climáticas locais. E, por fim, sensores urbanos para monitoramento ambiental para identificar padrões de poluição e alertar sobre eventos climáticos extremos.

Inclusão social e equidade

Diante das desigualdades sociais evidentes em muitas áreas urbanas, os próximos anos exigirão um esforço conjunto entre gestores e técnicos públicos dos três entes federativos, empresas e população para garantir o acesso universal à moradia, à infraestrutura urbana, equipamentos e serviços públicos e o fortalecimentos dos instrumentos adequados para a participação de grupos sociais diversos na tomada de decisões sobre a gestão das intervenções necessárias à realidade local. O urbanismo local, que afeta o cotidiano das pessoas, precisa se integrar ao planejamento urbano generalista, que muitas vezes ignora as necessidades cotidianas. Planos de bairro e planos de rua precisar ingressar na prática de gestão urbana municipal. 

Governança urbana participativa

A participação cidadã na tomada de decisões urbanas é crucial para assegurar representação diversificada e transparente. O desafio é fortalecer instituições governamentais urbanas para garantir governança eficaz, transparente e responsável. Estimular a participação cidadã, fortalecer instituições de controle social e garantir a transparência governamental são passos fundamentais nesse percurso por meio do desenvolvimento de plataformas online e aplicativos que permitem aos cidadãos relatar problemas ambientais em tempo real, como pontos de alagamento ou áreas com poluição do ar, por exemplo.

Complexos e interligados, os temas voltados ao cumprimento das metas presentes na Agenda 2030 refletem a busca por soluções que permitam que as cidades prosperem diante de desafios globais. Ao adotar estratégias ambientais, fomentar inclusão social e garantir transparência e participação cidadã na governança pública, as cidades fortalecem a resiliência e constroem comunidades sustentáveis. A busca pela sustentabilidade urbana não apenas promove eficiência e resiliência, mas também compromete-se a distribuir equitativamente os benefícios, trilhando o caminho de um futuro mais justo e sustentável para todas as pessoas.

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram@helenadegreas.

Coletivos ambientais remodelam o cenário urbano e promovem a infraestrutura verde nas cidades

Busca por cidades mais verdes e ecologicamente equilibradas é uma empreitada que encontra inúmeros desafios, especialmente quando impulsionada por coletivos urbanos e grupos de ativistas dedicados ao plantio de árvores

Originalmente publicado Jovem Pan > Opinião Jovem Pan > Comentaristas > Helena Degreas  em 21/12/2023 17h14 – Atualizado em 21/12/2023 18h31

Fotos Gratuitas/Freepik

Imersa em uma realidade natalina para lá de estranha, vejo pessoas carregando árvores de plástico já decoradas com a tão esperada neve tropical enquanto enfrento temperaturas de 38 °C em ruas desprovidas de sombras. Nas redes sociais, cidadãos reclamam das ondas de calor enquanto arrancam árvores da calçada com o objetivo de “melhorar a entrada do estacionamento” do condomínio onde residem, regozijando-se com os valores irrisórios das multas e a falta de fiscalização pública. Este último fato ocorreu na semana passada em uma discussão acalorada em um grupo de WhatsApp do qual, para minha infelicidade, sou obrigada a participar. Apesar do caos cotidiano que nos envolve, no último ano, encontrei grande satisfação em dedicar meu tempo livre ao voluntariado ambiental, participando ativamente do plantio de árvores com pessoas comprometidas em aprimorar as condições climáticas para as gerações futuras. No Brasil, onde aproximadamente 85% da população reside em ambientes urbanos, e globalmente, com mais de 50%, a empatia, generosidade e afeto são valores que prevalecem nestas iniciativas que, para o benefício do planeta e de todos nós, transformam positivamente nossas vidas.

A busca por cidades mais verdes e ecologicamente equilibradas é uma empreitada que encontra inúmeros desafios, especialmente quando impulsionada por coletivos urbanos e grupos de ativistas dedicados ao plantio de árvores. Nas discussões online dos grupos dos quais participo, surgiram algumas postagens que revelaram os entraves enfrentados por comunidades engajadas, destacando as barreiras encontradas no relacionamento e apoio do poder Executivo municipal encontradas em seus esforços para transformar o ambiente urbano. A história que descrevi no começo da coluna, foi apenas uma situação comum e reafirma visões individualistas, egoístas do ser humano, expressas no ditado popular “Farinha pouca, meu pirão primeiro”. Graças à educação, nossos jovens tendem a compreender e a agir em prol de uma realidade em que o comprometido com o bem-estar de todos os seres vivos do planeta, prevalece. Ególatras e “carrocêntricos” são uma espécie em extinção, portanto.

Apesar das dificuldades, ao longo do tempo, observei um aumento no número de cidadãos envolvidos em coletivos movidos por razões voltadas para o bem público. Eles persistem e buscam beneficiar toda a comunidade de maneira abrangente, contribuindo para o bem-estar da sociedade e a preservação sustentável das cidades. Essas ações geralmente são realizadas de forma colaborativa, envolvendo a participação ativa da comunidade local, grupos de voluntários, coletivos ambientais e organizações não governamentais, apontando para um futuro promissor em que a sustentabilidade apresenta-se como diretriz para a construção de um urbanismo verde.

Nas discussões dos grupos, os maiores entraves encontram-se na atuação e interferência do poder público municipal. Guiado por um funcionamento burocrático, cuja tomada de decisões contrasta com abordagens voltadas à atuação desses grupos, a ação que visa a eficácia do processo de intervenção urbana por meio do plantio de corredores ecológicos no contexto climático, praticada e reivindicada pelo ativismo ambiental, expõe a falta de alinhamento e congruência do discurso público de constituição de cidades resilientes aos extremos climáticos. Suas ações, cujo tempo de implantação esbarra em um sistema de governo onde o cumprimento de regras e procedimentos burocráticos é mais valorizado do que a própria ação, engessam uma realidade viva e diversa. Não faltam exemplos dessas barreiras, que vão da dificuldade, quando não da relutância persistente, do poder público municipal em fornecer mudas para projetos que buscam criar jardins de chuva em bairros alagáveis, até o adensamento de áreas vegetadas com a inclusão de espécies nativas ou o plantio em calçadas para proporcionar sombra aos pedestres, que se mostram, dentre tantos outros, obstáculos constantes para essas iniciativas, gerando frustrações em seus esforços para o plantio.

Esforços mais recentes deste grupo mostram a busca pelo plantio em “corredores ecológicos”. A implementação de corredores ecológicos urbanos, derivada das deliberações e atividades desses grupos, mostra-se alinhada com as metas da Agenda Urbana Ambiental Internacional. Desde 2020, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) está apoiando uma iniciativa para coordenar, de forma técnica, a plantação de um trilhão de árvores no mundo objetivando reverter centenas de danos causados a florestas, pantanais e ecossistemas em todo o mundo. Em suas conferências, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o período entre 2021 e 2030 como a Década da Restauração dos Ecossistemas. 

Embora suas atuações se restrinjam ao âmbito local, observei que as diretrizes propostas visam integrar porções de ecossistemas naturais ou seminaturais ou na criação de novas áreas verdes, buscando facilitar a dispersão de espécies, revitalizar áreas degradadas e sustentar populações de organismos vivos, tanto da fauna quanto da flora, que necessitam de extensões mais amplas para sua subsistência. Ao destacar a participação ativa dos grupos ativistas, especialmente o coletivo Corredor Ecológico Urbano Butantã, dedicado ao plantio de árvores, arbustos e forrageiras em áreas públicas como calçadas e outros espaços livres públicos disponíveis em sistemas viários, essas ações estabelecem a conectividade biológica, facilitando a mobilidade de flora e fauna, promovendo a troca genética e estabelecendo uma malha contínua de áreas verdes com habitats interconectados. Nesse contexto, Nik Sabey, idealizador do movimento “Novas Árvores por Aí” (SP), mobiliza a realização de plantios coletivos, envolvendo escolas, organizações não governamentais e diversos interessados, assim como novas iniciativas como o Corredor Ecológico Ipiranga (SP), que busca unir o Parque Fontes do Ipiranga ao Córrego Jaboticabal, e a proposta de criação do Corredor Ecológico Urbano Ibirapuera (SP), conectando o Jardim da Aclimação ao Parque do mesmo nome, reforçando o compromisso desses grupos com a preservação ambiental e a integração de espaços verdes na cidade.

Ao fortalecer a resiliência ambiental do sistema ecológico urbano, essas ações possibilitam a adaptação e migração de espécies diante de perturbações, contribuindo para a melhoria da qualidade ambiental, favorecendo a regulação térmica e a gestão das águas pluviais. Adicionalmente, promovem o bem-estar da comunidade por meio de espaços verdes contínuos em áreas residuais provenientes das sobras do sistema viário, atuando de maneira ativa na preservação da biodiversidade, mesmo em ambientes densamente construídos. Nessa jornada em que estive envolvida nos últimos dois anos em busca de cidades resilientes, destaco a ascensão e o protagonismo do ativismo urbano como agente catalisador das ideias de um urbanismo verde voltado ao cotidiano dos cidadãos.

Além de remodelar o cenário urbano, esse movimento impulsiona a melhoria da qualidade de vida e a promoção da infraestrutura verde nas cidades, exemplificando boas práticas em diversas esferas. Acredito que o ativismo instiga o diálogo público ao realizar campanhas educativas e workshops, sensibilizando a população sobre a importância do plantio de árvores e cuidados necessários para aprimorar as cidades. Ao envolver as pessoas em eventos como plantios coletivos, observação de pássaros locais, criação de pequenas hortas em praças ou a instalação de colmeias de abelhas sem ferrão, promove-se a valorização da vida comunitária, congregando moradores, escolas e empresas em esforços conjuntos para construir ambientes mais sustentáveis. Adicionalmente, práticas como a defesa incansável de políticas públicas robustas, o uso de tecnologia inovadora para o monitoramento ambiental, intervenções artísticas, parcerias estratégicas com o setor privado e o estímulo ao voluntariado consolidam o ecossistema do ativismo urbano. 

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas

Enquete Jovem Pan para esta coluna: