Calçada tem de ser vista como parte importante da vida urbana, e não como lugar de passagem rápida de pessoas

Cidades civilizadas são construídas, literalmente, a cada passo, e é na infraestrutura de mobilidade a pé que se mede o respeito dedicado à população pelas prefeituras

Por Helena Degreas 10/02/2024 08h00 – Atualizado em 10/02/2024 12h39

Gestão eficiente e reorganização de prioridades podem transformar muitos lugares inadequados em excelentes espaços públicos – Fonte: freepik

Lembrei-me do jornalista Gilberto Dimenstein e do seu hábito saudável de, literalmente “andar por aí” e descobrir coisas e detalhes que só o passo lento, o olhar livre de intenções e o prazer estético são capazes de proporcionar. Tento, em vão, manter o hábito das longas caminhadas, mas “tá difícil”, Gilberto. É sério. O descaso para com o andar das pessoas é histórico e remonta o tipo de colonização de nossas terras. Está entranhado na gestão da coisa pública. Uma visita às cidades colonizadas pelos espanhóis mostra padrões rigorosos na forma urbana impactando diretamente na qualidade da paisagem vivenciada e nas calçadas. As ruas organizadas em um padrão de grade ao redor de uma “plaza” central revelam uma estrutura planejada, onde a igreja e o governo ocupavam lugares proeminentes. Essa disposição não apenas determinava a paisagem urbana, mas também exercia influência direta na construção das calçadas públicas. Ruas largas e alinhadas continuam a oferecer espaços generosos para a circulação de pedestres, enquanto a “plaza” central, frequentemente dominada por uma igreja de estilo barroco, transformava as calçadas em locais centrais para atividades sociais e religiosas.

Separados por um oceano de distância entre os continentes, a autoridade portuguesa presenciou o surgimento de povoamentos espontaneamente originados de expansões territoriais decorrentes de atividades econômicas, como bandeiras e mineração, religiosas, militares e indígenas. As ruas, frequentemente sinuosas, e, por extensão, as calçadas, ainda hoje, se adaptaram às características dos terrenos acidentados, seguindo as inclinações e larguras possíveis impostas pela topografia natural.

Poucos são os projetos urbanos de bairros e cidades executados por prefeituras e demais entes federativos. O que vivenciamos hoje é resultado de uma abordagem mais abstrata e centralizada proveniente de um planejamento urbano por meio do uso de taxas, coeficientes, indicadores e regulações que permitem ao proprietário de lotes e glebas praticamente definir a forma final do lugar por onde andam as pessoas. Para os bairros periféricos, mais distantes das áreas centrais, a abordagem da forma urbana final é ainda mais complexa pois a ausência de regulamentações urbanas e políticas públicas de habitação secularmente frouxas no atendimento das populações, levou e ainda leva, à autoprodução de bairros em áreas urbanas que ainda hoje resultam em vielas e becos prejudiciais aos cidadãos além de caminhos de acesso informais, rotas improvisadas que conectam diferentes partes do assentamento, frequentemente sem planejamento formal, enquanto vielas e becos formam estreitas passagens entre edificações, ocasionalmente constituindo redes complexas de caminhos sinuosos.

Embora a demanda por moradia cresça exponencialmente, os projetos urbanos de bairros e cidades implementados por prefeituras e outros entes federativos desde o século XX são insuficientes. A abordagem predominante, baseada em taxas, coeficientes e indicadores numéricos, prioriza o planejamento abstrato e centralizado, relegando a segundo plano as necessidades das pessoas que vivem e circulam nas cidades. Essa lógica coloca nas mãos dos proprietários de terrenos a responsabilidade final pela forma do lugar, sem considerar o impacto social e ambiental das decisões tomadas.

A situação nos bairros periféricos apresenta uma complexidade ainda maior. A histórica negligência do Estado na regulamentação urbana e na implementação de políticas públicas de habitação levou à autoconstrução de grande parte desses assentamentos. Isso se reflete em vielas e becos estreitos, muitas vezes sem planejamento formal, dificultando o acesso e a circulação dos moradores e configurando redes complexas de caminhos sinuosos. Frequentemente, essas áreas carecem de infraestrutura básica adequada, como pavimentação, iluminação e saneamento. A inexistência e a difícil implantação das calçadas é apenas um reflexo dessa realidade desafiadora.

No projeto #UmaRuaCadaDia, o Portal Mobilize especializado no conteúdo exclusivo sobre Mobilidade Urbana Sustentável vem publicando desde o primeiro dia do ano várias imagens que retratam as diferentes realidades das ruas e calçadas do território brasileiro. Rondon (PR), Hortolândia (SP), Caucaia (CE), Rio Formoso (PE) apresentam ruas com calçadinhas de pedra, ruas de terra, com mesinhas sobre o asfalto, estreitas e com carros estacionados sobre as calçadas, um mosaico das distintas realidades brasileiras dos locais por onde caminham os brasileiros. Questões de design/projeto frequentemente não são insolúveis; uma ênfase equivocada no tráfego automotivo ou medidas de segurança excessivamente rigorosas pode ser a linha que separa o fracasso do sucesso. A gestão eficiente e uma reorganização de prioridades podem transformar muitos lugares inadequados em excelentes espaços públicos.

A infraestrutura de mobilidade a pé, englobando calçadas, pistas e travessias, é importante para a eficiência da mobilidade urbana, seguindo diretrizes dos planos de mobilidade de implantação obrigatória nas cidades brasileiras. Infraestrutura de mobilidade a pé abrange espaços viários como calçadas, pistas, canteiros centrais e travessias, incluindo elementos como calçadões, faixas elevadas, passarelas, sinalizações específicas e mobiliário urbano. A rede de mobilidade a pé opera em conexão, seguindo uma hierarquia viária para integrar elementos e fluxos de pedestres, sendo essencial para planejar e operar a mobilidade a pé de maneira eficiente. Não é um lugar de passagem rápida de pessoas. É parte importante da vida urbana.

As calçadas, em particular, são medidas da civilidade de um lugar público, sendo elementos fundamentais para consolidar laços sociais e promover qualidade de vida urbana. O espaço público transcende definições jurídicas e normas urbanísticas. Primordialmente, é um resultado do uso social, influenciado pelas variadas formas como as pessoas o ocupam e dele se apropriam. A qualidade desse espaço encontra-se na construção social e política, levando em conta os modos de utilização, os significados atribuídos, a acessibilidade e as dinâmicas sociais que o envolvem. Desta forma, as calçadas como integrantes do espaço público, emergem como uma métrica da civilidade e qualidade urbana. Ao repensarmos nossos espaços públicos, considerando usos, acessibilidade e dinâmicas sociais, podemos transformar não apenas as calçadas, mas toda a experiência urbana. Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou no Instagram: @helenadegreas

Espaços verdes urbanos para crianças têm poder transformador no desenvolvimento infantil

Espaços verdes urbanos para crianças têm poder transformador no desenvolvimento infantilInvestir na expansão e densificação de áreas verdes nas cidades é promover o crescimento saudável, garantindo o desenvolvimento pleno das próximas gerações

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  • Por Helena Degreas
  • 04/02/2024 08h00
  • coluna originalmente publicada para a Jovem Pan News

Standret/Freepik

Espaço verde urbano para crianças fortalece o desenvolvimento, incluindo equilíbrio motor, redução do estresse, melhor desempenho acadêmico e até mesmo menor incidência de problemas de saúde mental e física

Desde os primeiros dias de vida até a adolescência, as crianças podem colher inúmeros benefícios dos espaços verdes urbanos. O relatório “A Necessidade de Espaços Verdes Urbanos para o Desenvolvimento Ideal das Crianças” (título original The Necessity of Urban Green Space for Children’s Optimal Development: a discussion paper), publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), destaca os inúmeros benefícios dos espaços verdes na saúde e desenvolvimento infantil, assim como ações para melhorar o acesso a esses locais. Dentre as intervenções recomendadas, o texto defende a mobilização de grupos comunitários para reivindicar e zelar pelos seus espaços verdes locais, buscando o apoio do governo para a criação e aprimoramento de áreas verdes nas ruas, nos bairros e em ambientes escolares.

A definição do termo “espaço verde” ainda não é universal e, até o momento, não existem critérios mínimos internacionalmente aceitos para tais áreas em ambientes urbanos. Em sua essência, um espaço verde refere-se a uma porção de terra vegetada, abrangendo desde parques públicos e privados, a gramados, jardins residenciais e condominiais, calçadas, sistemas viários, playgrounds, terras agrícolas, terrenos abandonados, árvores ao longo de ruas, áreas adjacentes a estradas e coberturas verdes. Citei apenas alguns exemplos. Não cheguei a propor os espaços de água que incluem lagos, represas e orlas diversas. Fica para uma próxima coluna.

Embora observar um espaço verde pela janela seja benéfico para o desenvolvimento infantil, os benefícios aumentam significativamente quando as crianças dedicam algum tempo do seu dia para explorar, brincar, criar, relaxar e refletir dentro de um ambiente verde seguro. A configuração específica de um novo espaço verde (ou já existente) dependerá do contexto local, levando em consideração fatores como restrições de espaço, condições climáticas, influências culturais, preferências da comunidade e disponibilidade orçamentária. Isso pode variar desde a incorporação de uma simples árvore na rua até a criação de extensos parques públicos. É crucial que as crianças e a comunidade local participem ativamente e tenham suas vozes ouvidas em todo o processo de design. Estratégias para envolver as crianças incluem a utilização de modelos, desenhos coletivos e grupos focais, entre outras abordagens.

Estudos em várias partes do mundo (226 papers publicados em periódicos científicos foram utilizados como referência na redação do relatório da Unicef) destacam a correlação entre o acesso a áreas verdes e o desenvolvimento das crianças incluindo equilíbrio motor, redução do estresse, melhor desempenho acadêmico e até mesmo menor incidência de problemas de saúde mental e física. A importância da integração efetiva dos espaços verdes em ambientes urbanos densos é inquestionável e vem sendo posta em prática em diversas prefeituras.
Exemplos globais inspiradores, como o modelo de Singapura, Londres (Inglaterra), Buenos Aires (Plano BA Cidade Verde), além de Bogotá (Colômbia), mostram como é possível integrar efetivamente espaços verdes em ambientes urbanos densos. Parques, jardins em sistemas viário, redução do número de áreas de estacionamento rotativo substituídos por corredores arborizados e até mesmo telhados verdes tornaram-se partes essenciais da paisagem urbana, proporcionando oportunidades valiosas para as crianças conectarem-se com a natureza.

O documento aponta ainda alguns desafios nas questões relacionadas à facilidade com que as pessoas podem acessar e utilizar os serviços ou espaços existentes nas áreas verdes considerando as necessidades de específicas das pessoas fazendo um apelo para que as autoridades municipais ajam em resposta a esses desafios. Em muitos casos, a acessibilidade permanece como um grande desafio: distância, barreiras físicas e a falta de conscientização de pessoas e de empresas e mesmo das prefeituras limitam a capacidade das crianças, especialmente nas comunidades de baixa renda, de desfrutarem desses ambientes saudáveis. Neste momento, a atuação municipal eficaz na eliminação dos problemas por meio da escuta às reivindicações das crianças, seus principais usuários, é crucial para a transformação do local num ambiente vibrante, cheio de vida.

Destaco aqui algumas recomendações que podem servir de inspiração aos senhores prefeitos das cidades brasileiras:

  • É imperativo que os municípios incorporem espaços vegetados em todos os projetos de desenvolvimento urbano, integrando áreas de lazer, praças e parques como componentes essenciais do planejamento urbano. A acessibilidade universal, obrigatória não apenas pelo atendimento das leis e regulamentações urbanas, mas também como respeito à dignidade do cidadão, devem ser promovidas por meio da redução das distâncias e implementação de trilhas e caminhos seguros, criando corredores verdes que conectam áreas urbanas, estabelecendo uma rede verde acessível a todas as crianças;
  • Prefeitos devem lembrar-se que, embora trabalhosos na execução, o envolvimento dos usuários locais é importantíssimo no sucesso da criação dos espaços verdes por meio da participação ativa da comunidade no planejamento e manutenção de espaços verdes pois fortalece o senso de pertencimento por meio de atividades como plantio de árvores e limpeza levando à garantia de sucesso na manutenção do local. Os usuários conhecem melhor do que qualquer burocrata e tecnólogo o que importa para a melhoria do local;
  • Oferecer incentivos fiscais a empresas que adotam práticas sustentáveis, como inclusão de áreas verdes em projetos, beneficia as crianças e contribui para a saúde geral da comunidade. A promoção de zonas livres de carros e de seus estacionamento em ruas melhora a segurança e cria ambientes propícios para atividades ao ar livre, especialmente essenciais para garantir espaços seguros para as brincadeiras das crianças.

Em síntese, o relatório destaca a ligação inseparável entre cidades sustentáveis e o bem-estar das crianças, sublinhando a importância do papel desempenhado pela ação municipal na criação de ambientes urbanos propícios à saúde e ao desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes. Assegurar acesso equitativo a espaços verdes em toda a extensão da cidade, abrangendo desde as áreas centrais até as periferias, é uma responsabilidade compartilhada entre poder público, cidadãos, associações e empresas. Ao incorporar a arborização e a vegetação urbana nas estratégias de planejamento, as cidades não apenas investem no presente, promovendo a saúde e a felicidade das crianças, mas também moldam um futuro sustentável para toda a cidade. 

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Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

Doria trata o complexo do Ibirapuera como grande salão de negócios em vez de entregá-lo ao paulistano

Governo estadual entende lazer da população apenas como um prejuízo contábil, mas a cidade é muito mais do que shoppings, apartamentos short/long stay e coworkings

Por Helena Degreas

12/01/2021 09h00 – Atualizado em 12/01/2021 14h47

Divulgação/Secretaria de EsportesEdital de concessão do complexo do Ibirapuera prevê a possibilidade de demolição de todos os equipamentos esportivos do local

O recente edital proposto pelo governador João Doria que prevê a concessão do Conjunto Esportivo Constâncio Vaz Guimarães, conhecido como Complexo Desportivo do Ibirapuera, prevê a construção de uma arena e a possibilidade de demolição de todos os equipamentos esportivos do local. Em dezembro, a juíza Liliane Keyko Hioki, da 2ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, alegou que o processo licitatório é precipitado e feito sem análise sobre se o projeto apresentado pelo poder público realmente atende ao interesse público. O que se entende por interesse público? Quem é o público interessado? Muitas questões estão envolvidas e algumas delas podem não representar o interesse da população diretamente afetada: os usuários do complexo.

As declarações de Doria e de seu secretário de Esportes, Aildo Ferreira, defendem que não faz sentido gastar dinheiro público para manter uma “estrutura obsoleta, defasada, que atende muito mal os atletas de São Paulo”. O governador acrescenta que todo o conjunto gera prejuízo aos cofres públicos no montante de R$ 10 milhões. Dito de outra forma, entende-se que o complexo pode ser demolido sem prejuízo algum para a cidade e seus habitantes. Discordo e destaco duas das questões que considero fundamentais: o processo de tombamento de um complexo desportivo como necessário à preservação de um marco da cidade e a outra, que trata do conceito de interesse público.

 

Apesar do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) ter rejeitado o pedido de tombamento do Complexo Desportivo Ibirapuera, é importante ressaltar que a atual composição de seus membros foi alterada também pelo atual governador, reduzindo o papel das universidades e da população, por exemplo. A abertura de um processo de tombamento de um bem público permite que o povo reflita e atue diretamente sobre os destinos de um lugar que é utilizado por diferentes grupos sociais desde a década de 1950. A partir da participação popular nas decisões sobre o papel desempenhado por este complexo, seria possível proceder às reformas que atendam às necessidades e expectativas de um espectro social mais amplo, e não restrito a agentes públicos e empresas privadas. Além do mais, o instrumento de tombamento autoriza o concessionário a realizar reformas e remodelações que adequem as edificações, as novas funções e o uso contemporâneo de atletas e da população em geral. Como exemplo, a prefeita de Paris, Anne Hidalgo anunciou nesta semana a transformação do Champs-Élysées em um imenso jardim para uso da população. Ela está preocupada com a vida dos cidadãos em seus espaços públicos. A proposta é resultado de uma ampla consulta realizada junto à população e que representará a vontade dos parisienses. 

Já em São Paulo, a proposta para o novo empreendimento foi realizada por meio de um contrato celebrado entre o governo estadual a Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe). Os estudo para a modelagem comercial geraram o Documento Referencial para a concessão de uso do complexo desportivo “Constâncio Vaz Guimarães” e construção de arena multiuso. Ele descreve os novos usos previstos para a viabilização do negócio: arena multiuso (20 mil pessoas, com 45 mil m²), atividades esportivas (clube desportivo pago e áreas externas para uso livre, com 4.880 m²), comércio, serviços e shopping (lojas âncora, megalojas, lojas satélites, conveniências/serviços/entretenimento, quiosques, com 31.780 m²), hotel e residencial com serviços (200 unidades habitacionais e 181 apartamentos short/long stay), edifício multiuso (13 pavimentos de lajes corporativas, salas comerciais e espaços de coworking, totalizando cerca de 10 mil m²) e estacionamento (3.365 vagas). O programa de atividades e usos foi criado por uma empresa sem a participação da população ou outros grupos que atuam pela preservação dos bens culturais. Diferentemente da prefeita Anne Hidalgo, o governador João Dória entende a cidade como um campo fértil para a geração de novos negócios.

O Documento Referencial descreve a contrapartida oferecida aos cidadãos: em troca da construção do novo empreendimento, a população poderá usufruir gratuitamente de quatro quadras abertas. Em troca do direito de construção e exploração comercial durante a vigência da concessão de uma área cobiçada por empresas do ramo imobiliário, o empreendedor oferece ao cidadão uma área inferior a 3.000 m². Não é preciso muito esforço para perceber o quão desproporcional é a relação custo-benefício que envolve a contrapartida apresentada no documento. Entendo que faz-se necessária uma revisão urgente da situação apresentada pelo edital, pois os equipamentos propostos estão aquém daqueles que hoje já são oferecidos pelo atual complexo de forma gratuita aos cidadãos.

Recreação, lazer e espaços de vida pública são temas contemporâneos e estão na pauta das agendas de discussão urbana internacional, pois afetam diretamente a saúde física, mental e qualidade da vida de todas as pessoas. O edital de concessão deixa claro que tanto o governador João Doria quanto o secretário Aildo Ferreira tratam o direito ao tempo livre e à recreação da população como prejuízo contábil porque entendem que as questões relacionadas à cidade precisam ser tratadas como negócios. É um ponto de vista que me permito, como cidadã, discordar. A cidade é mais do que um shopping center, apartamentos short/long stay e coworking. A cidade é feita por pessoas e, como tal, deve ser planejada para sua fruição, sem custos adicionais ou venda de ingressos para acesso às oportunidades de entretenimento e recreação. Prover espaços livres públicos e de qualidade para o lazer de diversos grupos sociais é uma função de governos, não de empresas.

Para o arquiteto e pesquisador em patrimônio cultural Dr. Antônio Soukef Júnior, “o fato de o conjunto apresentar problemas de conservação, por falta de manutenção preventiva, não pode ser o principal argumento para sua destruição, pois sua importância histórica e cultural se sobrepõe à sua perda. Mais do que um complexo desportivo, ele deve ser pensado do ponto de vista urbanístico, já que se trata de um conjunto composto pelo Parque do Ibirapuera, a Assembleia Legislativa e o QG do II Exército”. Acrescenta ainda que “perder um conjunto esportivo que cumpre há décadas uma função social indispensável na formação de esportistas a fim de substituir o espaço por hotéis e demais empreendimentos imobiliários, sob o pretexto da obsolescência da ocupação original, parte de uma premissa simplista, que não leva em conta todos os fatores que deveriam ser pensados”. 

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Ao defender a substituição das arquiteturas existentes em função do mau estado de conservação e inadequação aos programas funcionais contemporâneos, o governador e seu secretário erram duplamente: primeiro ao demonstrar um profundo desconhecimento sobre a arquitetura e urbanismo modernistas brasileiros, sua importância na construção da identidade e da memória da cidade. Em segundo lugar, um profundo desrespeito à população por permitir a oferta de contrapartida vil face aos usos atuais e também por desconsiderar todos os abaixo-assinados e cartas públicas de instituições que defendem nosso patrimônio construído e que são contrários às políticas públicas que priorizam a cidade como negócio em detrimento dos seus cidadãos.

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Coluna originalmente publicada aqui

E se, no lugar das vagas de estacionamento nas ruas, a prefeitura construísse pracinhas para a gente se sentar?

Transtorno para o motorista ávido por largar sua propriedade privada (leia-se carro) em espaço público, pago ou não, o fato é que os chamados parklets são verdadeiros oásis no dia a dia do cidadão

  • Por Helena Degreas
  • 22/12/2020 08h00

Helena Degreas/Jovem PanOs parklets, pequenas extensões da calçada sobre vagas de automóveis, estão se espalhando pelo Brasil

E se no lugar das vagas de estacionamento nas ruas, as calçadas fossem ampliadas com jardins floridos, guarda-sóis e bancos para que a população pudesse sentar-se, ler um livro, descansar com seu pet, tomar um café no intervalo do trabalho, observar as outras pessoas ou simplesmente ler as notificações nas redes sociais em seus celulares? Parece absurdo, não é? Nem tanto. Prefeitos estão redesenhando suas cidades para que as pessoas possam usufruir dos espaços públicos. Para quem teve a oportunidade de viajar para outros países ou para os fãs de seriados estrangeiros, não é incomum ver calçadas lisinhas com pequenas extensões localizadas sobre vagas de automóveis. Podemos chamá-las de arquiteturas temporárias. No Brasil, recebem o nome de parklets e hoje se espalham em todo o território nacional. Embora sejam criadas e mantidas por estabelecimentos comerciais, desde que seguidos os manuais e a legislação vigente, podem ser eventualmente utilizadas por cidadãos.

Recentemente, a Prefeitura de São Paulo, à exemplo de outras cidades no Brasil e no mundo, abriu uma consulta pública com o intuito de saber a opinião do cidadão sobre o uso de calçadas e vagas de estacionamento de automóveis para o atendimento de bares e restaurantes locais, estendendo o espaço físico disponível da área de serviço interno dos estabelecimentos sobre a rua durante os períodos de pandemia e pós-pandemia. Dito de outra forma, as novas “pracinhas” passam a ter uso comercial para atender os clientes dos restaurantes. O conceito é bom e deve ser ampliado, mas é preciso que esta proposta se desenvolva paralelamente à ampliação das áreas de calçadas sobre as vagas de automóveis, oferecendo espaços livres públicos de qualidade para o cidadão não vinculados ao consumo destes estabelecimentos. Curiosamente, a prefeitura não disponibilizou paralelamente uma consulta pública para perguntar ao paulistano se ele deseja também pracinhas públicas, com bancos e jardins, sobre estas mesmas vagas. Por que não o fez? PUBLICIDADE

Calçadas são parte dos espaços livres de vida do cidadão quando fora de casa ou do trabalho e não devem ser tratadas predominantemente como produto comercializável e com retorno financeiro. A cidade de Nova York foi citada nesta mesma consulta pública como fonte de inspiração e exemplo para o programa. Verdade seja dita: estes espaços existem, mas são parte de um plano de mobilidade urbana que prioriza a segurança e o bem-estar dos cidadãos, composto por mais dez outros programas que incluem: fechamentos temporários e permanentes de faixas de automóveis e ruas inteiras, distribuição de bancos por toda a cidade, intervenções e redesenho de sistemas viários como esquinas e travessias, redes de circulação de pedestres, bairros calmos, com redução de velocidade onde predominam idosos, iluminação viária direcionada ao pedestre e sistema de comunicação visual urbano.


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Como os demais cidadãos que andam pelas cidades brasileiras, aguardo ansiosamente para que os projetos, programas e ações promovidos pela Prefeitura de São Paulo nas calçadas priorizem o bem-estar e a segurança das pessoas, disponibilizando a oferta não apenas das novas “pracinhas comerciais”, conhecidas como parklets, mas também todas as demais ações propostas pela cidade de Nova York que serviram de inspiração para a consulta pública. Que a inspiração se materialize rapidamente na forma de ações práticas à cidade de São Paulo em 2021. O cidadão agradece.

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Tipos de espaços livres públicos: Praças, Átrios, Largos, Pátios

Esse post tem por objetivo apresentar de forma sistematizada uma visão do estado de arte das praças brasileiras desde a sua origem até o início dos anos 2000. O material utilizado foi produzido ao longo de 7 anos de estudos do grupo QUAPA – Quadro do Paisagismo no Brasil, liderado pelo Prof. Dr. Silvio Soares Macedo e desenvolvido no Laboratório da Paisagem da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo entre 1994 e 2001.

Num primeiro momento, falaremos sobre a formação e evolução da praça na cidade brasileira, do final do século XVIII aos anos finais do século XX.

Várias são as definições para o termo praça. Mesmo havendo divergências entre autores, a praça é caracterizada como um espaço público destinado à con-vivênica de seus cidadãos, contextualizado em ambiente urbano e que se encontra livre de edificações.

No Brasil, o termo praça é comumente associado à idéia de áreas livres, geralmente ajardinadas, repletas de equipamentos públicos destinados à recreação de seus usuários conflitando em muito com os espaços e projetos dessa tipologia no continente europeu.

Para os gregos, a ágora era o espaço livre público por excelência, local onde o exercício da cidadania se materializava representando o espírito de coletividade da população.

Ágora grega (fonte: http://migre.me/me3v)

 A Ágora grega era o espaço público aberto da antiguidade clássica onde se praticava a democracia direta ou ainda, o lugar por excelência do debate das idéias, dos tribunis populares e onde eram discutidos os negócios e decididos os rumos da cidade. Por meio de assembléias e com direito igual a voto, aqueles considerados cidadãos eram ouvidos. Tratava-se de um espaço delimitado por edificações diversas de caráter público e Stoas, ou ainda, conjunto de pórticos ou colunatas abertos ao público onde o mercadores em feiras livres podiam comercializar seus produtos. Da ágora, era possível avistar a acrópole, ou ainda, o ponto mais alto da cidade (do grego ἀκρόπολις, composto de κρος, “extremo, alto”, e πόλις, “cidade”). Nesse lugar, eram construídos os templos aos deuses como o Parthenon em Atenas ou ainda os palácios.

Para os romanos, o Fórum era constituído por um espaço livre público central onde ocorriam as relações sociais, as atividades comerciais, religiosas e de mercado da comunidade.

Forum romano (imagem: http://migre.me/me7n)

O fórum romano era o centro comercial da Roma imperial. Nele localizavam-se as lojas, praças de mercado e locais para assembleias dos civitas ou ainda, cidadãos. Diferentemente da Ágora grega, o fórum era configurado por imponentes edifícios públicos que representavam a monumentalidade do Estado.  As discussões políticas aconteciam não nas praças abertas, mas no interior dos edifícios.

Origens


SIlvio Macedo: Acervo QUAPA

 

 
 
 “Reunir-se: fazer-se público de sua presença, exibir pompa, ver homens e mulheres bem-vestidos e bonitos, contar e ouvir as novidades, assistir a apresentações musicais, mostrar filhas na busca de maridos, homens finos admirando e fazendo corte a cortesãs. Os jogos sociais e sexuais – com a tácita concordância entre seus praticantes – o plaisir de la promenade, tinha uma palco magnífico nos jardins público.” Hugo Segawa.

Em seus estudos sobre praças contemporâneas, Macedo (2002) considera duas premissas básicas para conceituar tais espaços: uso e acessibilidade, conceituando-os  como espaços livres urbanos destinados ao lazer e ao convívio da população, acessíveis aos cidadãos e livres de veículos. Lembramos que os estudos foram elaborados a partir das praças nas cidades contemporâneas brasileiras. Ainda assim,  essa tipologia mantém o caráter de sociabilidade que é intrínseco às funções da praça descartando-se alguns logradouros públicos enquadrados como tal e que nada mais são do que canteiros centrais, rotatórias, restos de sistemas viários gramados não oferecendo condições mínimas adequadas ao exercício do lazer ou acessibilidade da população. Tal fato se deve à necessidade de muitos órgãos públicos municipais de ampliar quantitativamente o número dos seus espaços públicos e de lazer perante a comunidade.
Os primeiros espaços livres públicos urbanos surgiram no entorno das Igrejas. Ao seu redor, foram construídos os edifícios públicos, palacetes e comércio servindo como local de convivência coletiva da comunidade. Murilo Marx afirma que a praça deve a sua existência sobretudo aos adros das Igrejas, onde serviu como espaço para reunião de pessoas e para um conjunto de atividades diferentes, caracterizando-se de forma bastante típica e marcante. 

A forma urbana influenciou o traçado de nossos logradouros públicos. Se para a colonização espanhola, as ruas eram traçadas em cruz e na colonização inglesa, francesa, holandesa e belga, os traçados obedeciam a sistemas em xadrez, radiocêntricos e lineares, as cidades de colonização portuguesa cresceram de forma espontânea assumindo a modelagem do terreno e de maneira informal, quando não, à margem da lei.  


imagens de Bruxelas : Ssolbergj

 

 

Vista panorâmica sobre a Londres moderna,
vista da Golden Gallery da Saint Paul’s Cathedral: http://migre.me/nQbZ

Praças, Largos, Adros, Átrios e Pátios

A praça como a conhecemos hoje, sempre foi o local para reunião de gente e para o exerício da vida pública destacando em frente aos edifícios públicos, igrjeas ou conventos destacando-se na paisagem urbana.

 Os templos, seculares ou regulares, raramente eram sobrepujados em importância por qualquer outro edifício, nas freguesias ou nas maiores vilas. Congregavam os fiéis, e os seus adros reuniam em torno de si as casas, as vendas e quando não o paço da câmara. Largos, pátios, rocios e terreiros, ostentando o nome do santo que consagrava a igreja, garantiam uma área mais generosa à sua frente e um espaço mais condizente com o seu frontispício. Serviam ao acesso mais fácil dos membros da comunidade, à saída e ao retorno das procissões, à representação dos autos-da-fé. E, pelo seu destaque e proporção, atendiam também a atividades mundanas, como as de recreio, de mercado, de caráter político e militar. À linearidade, as ruas de interligação como as chamadas Direitas. À irregularidade, uma outra ordem que não a das vias ortogonais”. In: MARX, Murillo. Cidade Brasileira. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1980, p. 54.

Sem idetinficação: Acervo QUAPASEL 2002

 

Silvio Soares Macedo: Acervo QUAPASEL 2002

 Praças secas européias

Praça de São Pedro em 1909: acervo http://migre.me/nvf0

praça seca (Acervo QUAPA, 2000)

Pátios ou ainda Átrios
O conceito dos pátios remete-se à necessidade humana e proteção do espaço exterior, desconhecido e hostil. Devido ao seu isolamento, proporciona aos seus habitantes, a impressão de domínio, pois o homem necessita de planos de paredes ou cercamentos para sentir-se seguro. Mesmo após longa evolução que alterou aspectos funcionais, o pátio permanece centralizado na edificação, delimitado por paredes e não coberto. A forma em planta não fixa, podendo apresentar-se circular, quadrado, oval ou retangular. A única certeza é que trata-se de espao delimitado pelos muros que o cercam. Várias são suas funções e por isso, apresentam mobiliários e formas distintas. Existem pátios de fábricas, de residências, de claustros, de escolas, de presídios, de conjuntos de casas.

Pátios de Cordoba: Dolores María Macías Naranjo

Na cidade, os pátios são espaços livres públicos definidos a partir de uma igreja ou outro elemento arquitetônico expressivo, além do casario antigo aos quais dá acesso, quase sempre pavimentados e exercendo a função de respiradouros, de propiciadores do encontro social e eventualmente destinados a atividades lúdicas temporárias.”
SÁ CARNEIRO, Ana Rita, MESQUITA, Liana de Barros (orgs.). Espaços livres do Recife. Recife: Prefeitura da Cidade do Recife/UFPE, 2000, p. 29.

Largos
“São espaços livres públicos definidos a partir de um equipamento geralmente comercial, com o fim de valorizar ou complementar alguma edificação como mercado público, podendo também ser destinados a atividades lúdicas temporárias.”
SÁ CARNEIRO, Ana Rita, MESQUITA, Liana de Barros (orgs.). Espaços livres do Recife. Recife: Prefeitura da Cidade do Recife/UFPE, 2000, p. 29.

Largo da MemóriaSP: Dornicke

Largo do Paissandú SP com Igreja Nossa Senhora do Rosário à direita:GFDL / CC-By-SA

Adros

Os adros são as áreas externas, cercadas ou não, de edificações religiosas que geram espaços contíguos bastante característicos. Tem caráter público e agregador social, dervindo ainda hoje para  a realização de procissões e festas religiosas, feiras e mercado livre ou ainda espaço de lazer da população.
 

Adro e Largo da Igreja no Antônio Dias: acervo http://migre.me/nv67

Igreja de São Pedro em Recife (acervo: uol)

Referências Bibliográficas
 
Gomes, Marcos Antônio Silvestre. De Largo a Jardim: praças públicas no Brasil – algumas aproximações.
Disponível em: http://migre.me/nP9H . Acesso: 12.03.2010 18:25:15
MACEDO, S. S.(Coord.).Introdução a um quadro do paisagismo no Brasil. São Paulo: Projeto Quapá, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 1998.
MARX, M. Cidade Brasileira. São Paulo: Melhoramentos: Editora da Universidadede São Paulo, 1980.
ROBBA, F; MACEDO, S. S. Praças Brasileiras. (public squares in Brazil). São Paulo: Edusp: Imprensa oficial do Estado. 2002, 312p.
SEGAWA, H. Ao amor do público: jardins no Brasil. São Paulo: Studio Nobel:Fapesp, 1996.

Fonte de referência: acervo QUAPA, QUAPASEL
Revistas Paisagem & Ambiente: ensaios (coleção QUAPASEL)
MACEDO, Silvio Soares e ROBBA, Fábio; Praças Brasileiras; São Paulo: Edusp, 2002, ISBN 85-314-0656-0
Para você aluno: vale à pena pesquisar nesses dois links pois eles contém mais de duas centenas de projetos de paisagismo distribuídos em todo o país.

http://winweb.redealuno.usp.br/quapa/
http://winweb.redealuno.usp.br/quapa/busca.asp