Descrição da imagem #PraCegoVer: Imagem no formato quadrado. Uma série de pernas de mesas em um restaurante. As mesas são de madeira escura e as toalhas são brancas. Fim da descrição.
Arquiteta destaca o absurdo da falta de acessibilidade das mesas (Foto: Divulgação)

Por: Helena Degreas*

Outro dia, ao colocar as leituras do meu twitter em dia, um dos títulos e foto me chamou a atenção: a mesa dos sonhos de todo o cadeirante! Pensei: já li e ouvi sobre vários tipos de sonhos de consumo… carros, aviões, castelos, viagens, nem sei mais o quê… de minha parte, ando sonhando com 30 minutos diários de sossego destinados só para mim…. Egoísmo? Pode até ser, mas como mercadoria escassa, não encontro.

Voltando ao assunto: mesa? Por que mesa? Deve ter um tremendo design exclusivo, sei lá. Fui atrás do link. Encontrei o amigo @Fred_Rios lá no blog Acessibilidade na Prática. Pensei: preciso entender melhor essa história. Não nos conhecemos pessoalmente, mas trocamos ideias pelas redes sociais faz tempo. Gosto, em especial, da Multa Moral. Mas isso é prosa para outro dia.

Morri de vergonha, literalmente. Como pessoa, como empresária, como educadora e como profissional de projeto. Logo de cara, ele escreve: “entre os vários perrengues que passo por ser cadeirante, um dos que mais me tiram do sério é a falta de mesas acessíveis para fazer uma simples refeição. São raros os restaurantes, lanchonetes e praças de alimentação onde consigo me acomodar adequadamente com a cadeira de rodas, sendo necessário, muitas vezes, ficar de lado na mesa, me posicionar muito distante da comida ou até mesmo pedir ajuda para outra pessoa, já que não tenho destreza nas mãos”.

O quê? Como assim gente? Que absurdo! O cara quer sair de casa, tomar um lanchinho sozinho, com os amigos, com a mulher, os filhos, o cachorro, o vizinho, ou seja lá com quem for e não consegue por causa de uma mesinha? Ou ainda, o cara vai até o bar, restaurante, lanchonete, churrascaria, pub, casa de shows ou em qualquer lugar que ele quer ir para consumir como eu e você e a tal da mesinha à toa não permite que ele se sente e consuma como eu e você? Que horror! Como diz minha colega Thais Frota: “a deficiência está no projeto do ambiente e não na pessoa que não consegue usar o espaço”.

Designers de interiores e arquitetos leitores: será que precisamos queimar muitos neurônios ou necessitamos de muito esforço intelectual e capacidade criativa para disponibilizar mesas que permitam que um usuário, que traz sua própria cadeira, possa sentar-se à mesa como seus amigos e desfrutar de bons momentos? Será que a gente precisa de lei para projetar para pessoas com habilidades funcionais do corpo diversificadas? É tão difícil assim?

Já sei que vai ter colega falando: “ah… mas o cliente pediu para colocar mais mesas, e uma cadeira ocupa mais espaço”, ou ainda, “onde é que eu vou encontrar mobiliário adaptado?”

GENTE, para com isso! Além dessa asneira, tem outras mais que não vou colocar nesse breve espaço. É certo que muitos indivíduos necessitam de tecnologias assistivas, mas também é certo que, muitas vezes, um pouco de bom senso ajuda. Nosso tempo é precioso demais para ficar me estendendo com explicações estapafúrdias (que ouço todo santo dia) de quem nunca será bom profissional. As normas estão todas aqui. Móveis comerciais ou exclusivos têm aos montes: de preços, modelos e materiais diversos. É só procurar e utilizar nos ambientes criados. Se não tiver disponível, é só projetar, detalhar e mandar fazer. É o que sabemos fazer: projetar sonhos.

Repentinamente lembrei-me de uma frase do meu falecido sogro. Homem astuto, afeito a negócios, fez família e algum dinheiro mesmo sem nunca ter estudado. Ele não se cansava de repetir: “dinheiro não tolera desaforo”. Verdade. Nunca esqueci. E em tempos bicudos como os de hoje, a frase soa ainda mais verdadeira.

Recentemente estive com alguns amigos em um restaurante aqui em São Paulo. Quando criança, meu sogro levava os filhos. Meu marido fez o mesmo. Meus filhos já estão repetindo a mesma ação. São três gerações. Na noite em questão, observei algo que me chamou a atenção. Talvez ainda estivesse fresco na minha mente o assunto da aula da manhã. Havia falado sobre o processo de envelhecimento e, com ele, a perda natural de algumas habilidades físicas. O ambiente estava repleto de famílias compostas por várias gerações de indivíduos. Do meu lado, tínhamos uma mesa bem comprida. Nela estavam compartilhando a refeição, as risadas, as conversas e as lembranças os bisavôs e bisavós (que trouxeram suas cadeirinhas de casa e estava comendo na mesma posição que os demais), avós, filhos, netos e bisnetos. Lindo de se ver. E não era um caso apenas. Cerca de um terço do restaurante estava assim. Chamei o gerente:

– Lindo seu restaurante! Várias gerações! Gente de todas as idades.

No que ele responde:

– A senhora viu? A gente trocou a decoração! Estava na hora, né?

Ele só ouviu o “lindo” ao que parece… Olhei para todos os lados e não vi nada diferente… “Bacana! A iluminação… As toalhas… Bem legal…” Tipo… o que é que eu falo agora para ele?! Não estou vendo nada novo aqui…

O gerente: “Ah… As toalhas! Muito observadora a senhora! Nenhum cliente percebeu isso. Só a senhora! São iguais às outras, que eram iguais às outras e por aí vai… (rindo alto). O Sr. Mário é clássico. Não muda nada há décadas. Mas as mesas… essas sim! Trocamos algumas mesas!”

Mas do que é que esse homem estava falando? Debaixo das toalhas, tem mesas. E daí? E alguém vai ficar olhando o modelo da mesa debaixo das toalhas? Já vi a cena: Helena entra no restaurante com o marido, filhos e amigos. Helena, senta-se. Helena, morta de curiosidade para ver o que há sob a mesa tenta, sorrateiramente, olhar por debaixo da toalha. Helena não consegue ver nada. Helena já impaciente abre mão dos modos civilizados e, num rompante, levanta as toalhas e guardanapos. Cai uma taça. Impassíveis, as demais pessoas sentadas à mesa fingem não ver. Helena observa a mesa e diz: “Oh! É nova!” NÃO FIZ ISSO, ok? Ainda tenho um pouco de juízo. “É”… Respondo eu… “Legal. As outras não estavam boas?”.

– Estavam sim! Não sei se a senhora percebeu… Tem gente que está bem velhinha e vem aqui com a família. A família cresceu e eles continuam vindo aqui. Alguns têm cuidadores, outros não precisam. Antes eles vinham a pé. Agora também vem, mas trazem a cadeira junto. As mesas agora têm quatro pernas. A cadeira entra melhor. Os cadeirões para os bebês também entram melhor. Aliás, a senhora viu como esses jovens estão cada dia mais altos? Com as novas mesas, eles não batem os joelhos e nem ficam mais comendo com o corpo retorcido tentando alcançar o prato. Ficam mais tempo e pedem sobremesa dupla. Ah! Tem as mesas redondinhas também… A gente mandou colocar um tampo maior. Agora todos comem junto. A gente tem que preservar o cliente, né? Toda semana tem alguma comemoração. Uma hora é aniversário, outra hora é um noivado, depois estão comemorando a faculdade nova do neto, se despedindo do bisneto que vai trabalhar na Europa… Já pensou se eles deixam de vir aqui e vão ao concorrente do lado só por causa de uma mesa? Não dá, né? Dinheiro não nasce em árvore… (rindo alto).

Homem de negócios. Ação simples, direta e objetiva. Dá para ser um ambiente bacana, cool, virar tendência ou entrar no circuito da moda com ambientes bem projetados e que atendam todas as pessoas.

Fred, nesse bate-papo, acho que concordamos no seguinte: sair para curtir uma boa companhia e “passar perrengue” num ambiente desconfortável, definitivamente não dá. Além da óbvia falta de respeito para com as pessoas, os donos do negócio também não sabem “fazer dinheiro” como diria meu sogro. Estão jogando cliente fora. De minha parte, continuarei como você batendo na tecla da necessidade de boas práticas projetuais. Ensinando, como a Thais que bons projetos, são sempre bons projetos porque atendem as necessidades de todos os clientes. Com conforto, funcionalidade, bom gosto e elegância.

 

Descrição da imagem #PraCegoVer: A imagem está no formato retangular, na vertical. Nela, está a arquiteta Helena Degreas em um retrato preto e branco. Helena tem cabelos loiros, ondulados, um pouco abaixo dos ombros. Ela está com o corpo de lado e com os braços cruzados. Helena usa uma blusa branca, com botões.Fim da descrição.
Foto: Divulgação

*Helena Degreas é arquiteta e atua como professora do Programa de Mestrado Profissional em Projeto, Produção e Gestão do Espaço Urbano do FIAM-FAAM Centro Universitário. Leciona nas áreas de Design Universal e Planejamento Urbano.

 

 

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