O que faz você sentir que pertence a uma cidade?

A coluna destaca a importância do sentimento de pertencimento urbano para a inclusão e representatividade de todos os grupos sociais na construção das cidades. O texto apresenta a experiência do Urban Belonging Project, destacando a sua abordagem inovadora e inclusiva para compreender as experiências das pessoas na cidade e colaborar na produção de políticas urbanas orientadas para todos os cidadãos.

Projeto dinamarquês com o envolvimento de diversos grupos marginalizados da sociedade revelou as diferentes formas como as pessoas vivenciam o lugar em que moram

Coluna originalmente publicada em Jovem Pan > Opinião Jovem Pan > Comentaristas > Helena Degreas 

Urban Belonging Collective/DivulgaçãoRetratos dos participantes do projeto Urban BelongingRetratos dos participantes do projeto Urban Belonging

É possível sentir-se conectado emocional, cultural e socialmente com o ambiente urbano e a comunidade ao seu redor? A noção de pertencimento vai além da mera presença física em um determinado local. Envolve o compartilhamento de interesses comuns, valores e laços sociais que, pela interação regular, constante, forma um conjunto coeso e interdependente. Para alguns, pertencer a uma cidade pode significar ter raízes profundas na comunidade, com várias gerações de familiares que viveram e contribuíram para o desenvolvimento do local. Para outros, pode ser a sensação de ser aceito e valorizado por seus pares, encontrar apoio em grupos sociais ou culturais específicos dentro da cidade. 

Mas como se sentem indivíduos e grupos cujas oportunidades de engajamento cívico e participação em atividades comunitárias são limitadas? A exclusão e marginalização de minorias se manifestam na negação de acesso a serviços e recursos essenciais, bem como na falta de representatividade em decisões que moldam suas cidades gerando um sentimento de desvinculação e impotência, minando a confiança na capacidade de contribuir para a vida urbana. A falta de representatividade e respeito também alimenta a frustração, evidenciando a necessidade de promover uma participação mais inclusiva e empoderada na esfera pública.

Segundo o geógrafo Milton Santos, a cidade transcende suas dimensões físicas ao se tornar a expressão tangível das interações sociais, configurando o que ele denominou de “quinta dimensão do espaço”. Essa dimensão vai além da simples geografia urbana, abraçando as experiências cotidianas das pessoas, suas interações sociais e culturais, bem como os significados simbólicos atribuídos aos diferentes lugares e objetos dentro do ambiente urbano. Nesse contexto, a cidade se revela como um espaço social, vivo, moldado pela complexa teia de relações humanas que a permeiam. Cidade é sociedade, relações e interações entre pessoas.

Recentemente, tive contato com o Urban Belonging Project, iniciativa lançada em 2021 com o objetivo de compreender o que faz as pessoas se sentirem parte de uma cidade, em Copenhague, na Dinamarca. Financiado pelo Doing Data Together e pelo Innovation Fund Denmark, o projeto adotou uma abordagem inovadora e inclusiva, desafiando o paradigma tradicional do planejamento urbano liderado por técnicos e agentes públicos. Ao invés disso, direcionou sua atenção para os cidadãos comuns, dando voz às suas experiências muitas vezes negligenciadas. A sensação de pertencimento é essencial para a coesão social. Quando as minorias são excluídas, seja por discriminação, preconceito ou falta de representatividade, isso não apenas mina seu senso de pertencimento, mas também enfraquece o tecido social da comunidade. É fundamental reconhecer e valorizar a diversidade para criar um ambiente onde todos se sintam incluídos e aceitos, promovendo um sentimento de pertencimento genuíno e fortalecendo os laços comunitários.

O projeto envolveu diversos grupos da sociedade, como pessoas LGBTQIAP+, sem-tetos, minorias étnicas, com deficiências físicas e vulnerabilidade mental, migrantes e refugiados, que frequentemente são marginalizados e excluídos em diferentes aspectos da vida social, econômica, política e cultural. Por meio de um aplicativo de fotografia e Sistema de Informação Geográfica participativo (SIG), esses grupos registraram, durante dez dias, os lugares que influenciam sua sensação de pertencimento na cidade. Com base nessa ampla coleta de dados, foram realizados workshops, culminando em uma exposição pública de fotos, mapas e visualizações em 2022. Os resultados foram integrados em um Datascape, oferecendo uma representação visual dos insights obtidos. Vale a visita no site. Os resultados surpreendem.

A investigação central do projeto — o que faz você sentir que pertence a uma cidade? — orienta a obtenção de informações, que é realizada por meio de narrativas, fotografias e mapas elaborados pelos próprios envolvidos. Essa mudança de perspectiva coloca a experiência individual no centro do processo de planejamento urbano, reconhecendo a riqueza da diversidade e as nuances presentes na vida das pessoas, promovendo um sentimento de pertencimento e empoderamento. As histórias e experiências compartilhadas pelos participantes revelaram as diferentes formas como as pessoas vivenciam a cidade. Espaços físicos podem ser imbuídos de significado emocional, proporcionando sentimentos de pertencimento ou alienação. Ao destacar as experiências positivas e negativas, o projeto desafiou noções convencionais de planejamento e projeto do espaço urbano, abrindo caminho para uma reflexão mais profunda sobre inclusão, acessibilidade, justiça espacial e pertencimento.

É possível afirmar que o “Urban Belonging Project” vai além da mera documentação das experiências da comunidade. Ao capacitar os participantes a interpretar seus dados e compartilhar suas narrativas, colocou o poder analítico nas mãos daqueles que muitas vezes são silenciados, excluídos do processo decisório. Essa transformação de dados em ferramentas para a mudança empodera comunidades e permite a criação de políticas públicas mais justas, inclusivas e sustentáveis, que consideram a dimensão política cidadã, as necessidades específicas de diferentes grupos sociais e o sentimento de pertencimento. O projeto se propõe a transformar insights em princípios de design urbano e cenários futuros que podem ser utilizados pelos profissionais urbanistas para a busca de uma cidade socialmente sustentável. 

A cidade, como nos é apresentada pelo projeto, é um mosaico de experiências, perspectivas, identidades e lugares de pertencimento. Essa visão desafia nossa compreensão convencional de espaços públicos e nos convida a repensar a forma como concebemos e habitamos nossas comunidades. O foco na participação política, na construção de uma cidadania ativa e no sentimento de pertencimento é essencial para a criação de cidades verdadeiramente sustentáveis, acolhedoras e vibrantes para todos. Ao integrar a abordagem participativa e inclusiva do “Urban Belonging Project” ao planejamento urbano, podemos construir cidades que reconheçam e valorizem a diversidade, promovam a inclusão e o pertencimento. Essa mudança de paradigma pode levar à construção de lugares em que cada indivíduo se sinta seguro, acolhido, livre para exercer seus direitos e potencialidades, com voz ativa na esfera pública e um forte sentimento de pertencimento à comunidade.

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Até turistas são afetados quando espaços públicos de uma cidade perdem sua autenticidade

Dia desses, observei a decepção de dois casais de fora ao não encontrarem a confeitaria que tanto amavam; episódio ilustra como a homogeneização da paisagem impacta não apenas os moradores

Por Helena Degreas 09/03/2024 08h00 – coluna originalmente publicada para a JovemPanNews

Turistas de Porto Alegre posam para foto em frente à Catedral da Sé, no centro de São Paulo – VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO CONTEÚDO

Saio pouco de casa. No passado, nem tão distante, costumava ter quatro ou cinco compromissos ao longo do dia, em decorrência de uma rotina que me impus, seja pelos diversos empregos, seja pelas atividades triviais e cotidianas relacionadas à vida. Para me deslocar, usava o carro, privilégio de poucos, confesso. Ao longo dos anos, por prescrição médica, virei andarilha. Perfeita flâneur, desenterrei meu lado bisbilhoteiro e descobri-me enxerida nata. Ouvir a conversa dos outros é, para mim, abrir a caixa de Pandora: eu não consigo imaginar a surpresa que me aguarda nas conversas entre desconhecidos.

Dia desses, vejo dois casais parados em frente a uma longa fileira de tapumes. “Não tem nada aí para olhar”, pensei, “o que estarão fazendo?”. Cheguei mais perto. “Mor… cadê aquela confeitaria gostosinha? Não é aqui?”. “Ué” diz o moço, “não entendi. Acho que a gente errou o lugar”. O outro casal: “Não… tenho certeza, é aqui sim… é do lado daquela loja fechada que a gente comprou uns artesanatos, lembra? Parece que andaram cortando as árvores grandes também”. Suspirando, a outra moça reclama: “Não é mais o lugar que a gente vinha pra conversar. Vão construir prédio”.

“Claramente turistas”, pensei. Os dois casais se afastaram em busca de algum lugar que lhes proporcionasse a mesma sensação boa da tal confeitaria. Identidade do lugar e memória afetiva seriam as expressões que, numa sala de aula, utilizaria para explicar a situação de conforto, felicidade e prazer vivenciado em bons momentos e lembranças que acontecem em espaços públicos, na rua, na praça, no parque, na praia. As duas confeitarias destacavam-se pelo doces artesanais. Nada excepcional. Eu mesma parava, vez e outra por ali, para tomar um simples capuccino, que nem era tão bom assim, por um par de horas, simplesmente para ver pessoas, ouvir conversas alheias e colocar meus pensamentos em ordem. Respirar, enfim. O fato é que não eram franquias que vendem tudo igual em qualquer lugar e, também, não exibiam nenhum ranqueamento 5 estrelas nas paredes. O “chef”, basicamente, era o proprietário do estabelecimento que pensava assar bons bolos, doces e biscoitos. Por décadas, fez isso e vendeu muito com suas receitas. Deixou muita gente feliz. Eu era uma delas. Os dois casais também.

Concordo com as palavras da pesquisadora. Quando os espaços públicos perdem sua autenticidade, aquilo que os torna únicos, tornando-se genéricos e estandardizados, a atração para turistas em busca de vivências únicas é comprometida. Isso resulta em uma diminuição do potencial turístico dessas áreas, afetando negativamente toda a economia local que depende desse fluxo de visitantes em busca de autenticidade cultural. Não sei o nome das pessoas com as quais compartilho as experiências cotidianas durante minhas andanças por aí, mas conheço-os, entendo seus hábitos, reconheço suas roupas e, em alguns casos, compartilho rotinas e lugares onde faço compras, ajusto roupas, conserto sapatos, faço mercado, tomo sorvete, compro pão ou desembraço os pensamentos enquanto tomo um café. Agora não mais. Turistas e eu, moradora, estamos sofrendo a perda sistemática de nossas memórias afetivas vinculadas ao lugar em que estamos quer como moradores, quer como visitantes que desejam conosco compartilhar hábitos e costumes locais. Peculiaridades essas que enriquecem tanto a vivência quanto a experiência urbana.

Políticas públicas de alcance global e generalista, desvinculadas da realidade local, resultam frequentemente em ações locais desastrosas. Isso conduz a perdas irreversíveis de espaços tradicionais, descaracterizando trechos da cidade e bairros inteiros, prejudicando não apenas o que é visível, mas também o tecido social e sua cultura material e imaterial, elementos que definem cada comunidade. 

E, para definir uma comunidade, a colaboração, como mencionei na coluna passada, depende da atuação no processo de envolvimento para a criação e produção dos diversos stakeholders ou, ainda, associações de bairro, coletivos, comerciantes, organizações não governamentais junto com governos e empresas para criar políticas que identifiquem as qualidades locais e que podem contribuir para o desenvolvimento econômico. Trata-se de um processo trabalhoso que envolve a atuação constante, sistemática e permanente dos agentes públicos que ocorre por meio da realização de consultas públicas, workshops e reuniões de trabalho contínuas que só terminam com um consenso de todos os envolvidos. Estas ações são indispensáveis para definir de ações e estratégias que irão aprimorar a qualidade da vida dos que residem e, a partir daí, destacar as peculiaridades que fazem daquele lugar, daquela esquina ou daquela rua, únicos. Apenas desta forma a mitigação de problemas resultantes do processo e transformação podem ser acordadas por todos.

A recente experiência de um casal de turistas, buscando em vão uma confeitaria querida, ilustra como a homogeneização da paisagem e a descaracterização de espaços públicos que conferem vida à cidade afetam não apenas os moradores, mas também os visitantes em busca de autenticidade. A colaboração entre diversos stakeholders, incluindo moradores, comerciantes, organizações não governamentais e governos, torna-se essencial para criar políticas que valorizem as qualidades locais e contribuam para o desenvolvimento econômico, social e ambiental. Portanto, preservar a identidade local não é apenas uma questão meramente estética, mas um investimento na riqueza cultural e no bem-estar das comunidades, garantindo um futuro mais autêntico e sustentável para as cidades.

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População tem direito ao espaço público para exercer a sua cidadania

Embora o Recife tenha sido palco de uma manifestação pacífica no sábado, chamou-me a atenção a truculência adotada por policiais; quem irá se responsabilizar pelos cidadãos que hoje estão cegos?

Rodrigo Baltar/Agência Pixel/Estadão Conteúdo – 29/05/2021Protesto no Recife, no último sábado, registou conflito entre policiais e pessoas que se manifestavam contra o governo federal

As manifestações públicas nos espaços urbanos ocorrem desde sempre: ruaspraças, avenidas e áreas centrais são os locais que acolhem ações políticas que não se reduzem ou não cabem nos espaços privados de vida social. Transformados em palco para a realização de manifestação de matizes diversos, permitem que os atores sociais exponham suas reivindicações, evidenciando questões políticas e sociais. Em outras palavras, manifestem suas opiniões em “praça pública”. Quando associados à divulgação pelos meios de comunicação em massa, ganham importância e são capazes de influenciar a opinião de muitas pessoas. O sábado passado foi marcado por protestos organizados em redes sociais por meio da hashtag #29Mforabolsonaro, nos quais os manifestantes, enlutados com a perda de pessoas queridas (como bem escreveu o colunista Mathias Alencastro, da “Folha de S.Paulo”), gritavam contra a displicência criminosa adotada por autoridades públicas no combate a pandemia, que, até o dia de hoje, ceifou a vida de 462 mil brasileiros. Não é possível considerar esses dados como corriqueiros, normais.

Embora a manifestação tenha sido pacífica, chamou-me a atenção a truculência adotada por policiais militares na cidade do Recife. A partir das declarações de manifestantes feridos, lembrei-me da manchete de um jornal argentino de 2017 intitulada “Mirando na cabeça, polícia cega manifestantes com balas de borracha”. “Eles estavam atirando para cegar” disse um dos atingidos na Praça do Congresso, em Buenos Aires. Os argentinos expressavam desaprovação quanto às reformas previdenciárias que afetariam negativamente os trabalhadores. Era um ato político e legítimo. O cidadão tem o direito às cidades, à ocupação dos espaços públicos para expor suas opiniões ou suas indignações. É do jogo da democracia. A judicialização, na maior parte dos casos, demora décadas e não resolve as aflições do presente. Anos depois, em 2021, os brasileiros protestavam pela morte de amigos e familiares que poderiam estar vivos, não fosse a incapacidade do governo federal em tratar a questão à luz da ciência, como fizeram presidentes lúcidos de inúmeros países. São tratados da mesma forma truculenta por agentes públicos. Não imaginei ver ações de intimidação realizadas por grupos militares novamente contra grupos civis desarmados. Tais ações eram práticas corriqueiras durante o período em que vigorava a ditadura militar

O direito à expressão de repúdio da população frente aos descaminhos governamentais expõe ações coletivas urbanas de sujeitos sociais que saíram da comodidade das redes sociais, preferindo enfrentar a morte pelo vírus a aguardar que os agentes públicos, em tese seus representantes, ajam em prol das demandas públicas (direito à vida e à saúde) de todo um país. Cidadãos ativos, provocaram reações inadmissíveis de grupos que preferem a tranquilidade da ordem vigente (construída por alguns em benefício de poucos) em territórios públicos de um país democrático, amedrontando, encurralando e ferindo cidadãos. Controlar grupos sociais com o uso da brutalidade para “restabelecer” a ordem vigente?

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Quem definiu que manifestações pacíficas que defendem a aceleração do processo de imunização por parte das autoridades em espaços públicos fossem tratadas como atos terroristas pelos policiais militares da cidade do Recife? Quem deu a ordem? Por que deu a ordem? Quem irá se responsabilizar pelos cidadãos que hoje estão cegos? Que tipo de perigo oferece uma vereadora protestando para um conjunto de homens fardados (provavelmente armados), protegidos do lado de dentro de uma viatura policial, para que o gás de pimenta fosse utilizado contra ela? Não se trata de “balbúrdia” ou “baderna” para causar distúrbios no ambiente público. São cidadãos que exigem o restabelecimento da “ordem no ambiente público” pautada no direito à vida, à saúde, à educação e ao trabalho. Exigem também que sejam retomadas as discussões qualificadas dos temas que atendem às demandas sociais com ênfase em políticas públicas construídas para o bem-estar da população e do planeta.