População tem direito ao espaço público para exercer a sua cidadania

Embora o Recife tenha sido palco de uma manifestação pacífica no sábado, chamou-me a atenção a truculência adotada por policiais; quem irá se responsabilizar pelos cidadãos que hoje estão cegos?

Rodrigo Baltar/Agência Pixel/Estadão Conteúdo – 29/05/2021Protesto no Recife, no último sábado, registou conflito entre policiais e pessoas que se manifestavam contra o governo federal

As manifestações públicas nos espaços urbanos ocorrem desde sempre: ruaspraças, avenidas e áreas centrais são os locais que acolhem ações políticas que não se reduzem ou não cabem nos espaços privados de vida social. Transformados em palco para a realização de manifestação de matizes diversos, permitem que os atores sociais exponham suas reivindicações, evidenciando questões políticas e sociais. Em outras palavras, manifestem suas opiniões em “praça pública”. Quando associados à divulgação pelos meios de comunicação em massa, ganham importância e são capazes de influenciar a opinião de muitas pessoas. O sábado passado foi marcado por protestos organizados em redes sociais por meio da hashtag #29Mforabolsonaro, nos quais os manifestantes, enlutados com a perda de pessoas queridas (como bem escreveu o colunista Mathias Alencastro, da “Folha de S.Paulo”), gritavam contra a displicência criminosa adotada por autoridades públicas no combate a pandemia, que, até o dia de hoje, ceifou a vida de 462 mil brasileiros. Não é possível considerar esses dados como corriqueiros, normais.

Embora a manifestação tenha sido pacífica, chamou-me a atenção a truculência adotada por policiais militares na cidade do Recife. A partir das declarações de manifestantes feridos, lembrei-me da manchete de um jornal argentino de 2017 intitulada “Mirando na cabeça, polícia cega manifestantes com balas de borracha”. “Eles estavam atirando para cegar” disse um dos atingidos na Praça do Congresso, em Buenos Aires. Os argentinos expressavam desaprovação quanto às reformas previdenciárias que afetariam negativamente os trabalhadores. Era um ato político e legítimo. O cidadão tem o direito às cidades, à ocupação dos espaços públicos para expor suas opiniões ou suas indignações. É do jogo da democracia. A judicialização, na maior parte dos casos, demora décadas e não resolve as aflições do presente. Anos depois, em 2021, os brasileiros protestavam pela morte de amigos e familiares que poderiam estar vivos, não fosse a incapacidade do governo federal em tratar a questão à luz da ciência, como fizeram presidentes lúcidos de inúmeros países. São tratados da mesma forma truculenta por agentes públicos. Não imaginei ver ações de intimidação realizadas por grupos militares novamente contra grupos civis desarmados. Tais ações eram práticas corriqueiras durante o período em que vigorava a ditadura militar

O direito à expressão de repúdio da população frente aos descaminhos governamentais expõe ações coletivas urbanas de sujeitos sociais que saíram da comodidade das redes sociais, preferindo enfrentar a morte pelo vírus a aguardar que os agentes públicos, em tese seus representantes, ajam em prol das demandas públicas (direito à vida e à saúde) de todo um país. Cidadãos ativos, provocaram reações inadmissíveis de grupos que preferem a tranquilidade da ordem vigente (construída por alguns em benefício de poucos) em territórios públicos de um país democrático, amedrontando, encurralando e ferindo cidadãos. Controlar grupos sociais com o uso da brutalidade para “restabelecer” a ordem vigente?

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Ex-governador Jaime Lerner era um apaixonado por cidades e pessoas

Quem definiu que manifestações pacíficas que defendem a aceleração do processo de imunização por parte das autoridades em espaços públicos fossem tratadas como atos terroristas pelos policiais militares da cidade do Recife? Quem deu a ordem? Por que deu a ordem? Quem irá se responsabilizar pelos cidadãos que hoje estão cegos? Que tipo de perigo oferece uma vereadora protestando para um conjunto de homens fardados (provavelmente armados), protegidos do lado de dentro de uma viatura policial, para que o gás de pimenta fosse utilizado contra ela? Não se trata de “balbúrdia” ou “baderna” para causar distúrbios no ambiente público. São cidadãos que exigem o restabelecimento da “ordem no ambiente público” pautada no direito à vida, à saúde, à educação e ao trabalho. Exigem também que sejam retomadas as discussões qualificadas dos temas que atendem às demandas sociais com ênfase em políticas públicas construídas para o bem-estar da população e do planeta.

Revision of the Master Plan will make São Paulo more inclusive for whom?


The participation of people who live in regions with precarious infrastructure is necessary, that is, in the peripheries; citizens can submit proposals digitally by May 30

  • by Helena Degreas
  • 11/05/2021 09h00 – Atualizado em 11/05/2021 15h46

Helena Degreas

Municipal Secretary of Urbanism and Licensing, César Azevedo, stated that he intends to transform São Paulo into a more inclusive city by improving the strategic master plan

In an interview with Jornal da Manhã, by Jovem Pan, this Monday, 10th, the municipal secretary of Urbanism and Licensing, César Azevedo, stated that he intends to transform São Paulo into a more inclusive city by improving the strategic master plan. To this end, a consultancy (non-profit institution whose name is still unknown) was hired without bidding, which will carry out studies and diagnosis of any changes that will guide the discussions to the new plan. The secretary also cited consultations with a group of university professors – I find the idea interesting, although I still do not know who the invited researchers are and their relevance in the scenario of discussions on urban public policies – and added comments on the importance of citizen participation in this whole process. The digital platform Plano Diretor SP was launched on April 10 and will remain open until May 30 to receive proposals on the revision of the Strategic Master Plan (PDE) in 2021.

I didn’t quite understand what the secretary meant by “including city”. It’s a very broad concept, but it sounded good. It is only necessary to evaluate how the inclusion will take place. I remembered my dear Professor Milton Santos, who never tired of repeating in his classes: “City is infrastructure”. And, adding the thoughts of contemporary urban planners, the city is made by people and for people. More even, impossible. Systematic reviews of Master Plans are necessary so that cities can be adapted to the needs of the population. And, for the demands to be met, public participation is essential. Cities materialize the social relations of different groups that live in them. At this point, representativeness in decisions on the proposals for revision on the issues dealing with employment and housing, mobility, environment and climate, urban sanitation, urban risks among many other issues, which are of fundamental importance, is extremely important, as they will guide the intervention guidelines in cities and the allocation of funds for their materialization.

Due to the health crisis caused by the Covid-19 pandemic, the face-to-face meetings of social groups that represent citizens who live in regions with precarious infrastructure, or even in the “quasi-city” will be, to a certain extent, impaired. I explain: the digital debate demands access to the internet, infrastructure (computers, for example) and, mainly, financial resources to reach all of this. A study carried out by the Seade Foundation (2019) shows that the inequalities between “city and quasi-city” or even, center and peripheries, are profound. In urban regions where a more vulnerable population prevails, access to the Internet is made with a low-speed connection (56%), with exclusive use of cell phones (67%) and more: 25% of this population has never surfed the net.

Secretary, with this framework, how will these citizens be able to participate in the digital consultation? With low participation, the inclusion proposal is not feasible.

I believe that it is the government that is responsible for embracing a guideline that generates changes in the telecommunications sector, especially in the peripheral areas, including thousands of people. In several European and North American cities, ordinary people have access to the internet in squares, parks, buses, trains, subways, school equipment, cultural centers and museums, that is, they can get information through a free and public network. I didn’t read anything about it in the main proposals. In the meantime, extending the deadlines for the review is a priority. Upon entering the platform that summarizes the main suggestions made so far, I read that the city intends to take “consideration of the real city” through “special attention” to areas distant from the central regions. The whole city is real. The text is confused. The problem is that a few groups, especially the real estate and construction sectors, are organized, actively participate in the review and decide which guidelines are a priority, thus defining where the city funds will be allocated.

The secretaries and other participants in the PDE review must have realized that most of the urban territory (in addition to the Avenida Paulista and Faria Lima region) consists of neighborhoods and communities whose growth takes place outside the urban laws and, for this reason , have a disorganized appearance, are full of self-built houses and slums that spread along the streams, for example. In this case, I believe that the review should consider the “real city” (cited bay the secretary) where millions of citizens live, who are excluded from access to public facilities and urban infrastructure. If this is the proposal, it is excellent news, since thousands of people who occupy lots outside the law will have the real right of ownership by Usucapião (Immovable Property Not Susceptible to Acquisition Through Special Adverse Possession) , be it individual, be it collective. By this instrument, new owners will be entitled to install urban infrastructure such as public transport, schools, hospitals and health posts, security and green areas, for example.

For those who, like me, live and work in the “unreal city” (the one with public infrastructure) and who will not receive “special attention”, I suggest that they also participate in the review of the PDE. I’m already participating. My neighborhood has numerous problems which are by responsibility of the city of São Paulo. I need to know whether these issues will be a priority in the coming years and whether funds will be made available for their execution. Another theme mentioned in the secretary’s interview deals with the “reduction of distances” to reach the “inclusive city”. Mobility in the city of São Paulo is a subject that plagues everyone’s life. Several entities, such as the NGO Cidadeapé, which represent citizens in matters of active mobility, presented proposals demanding, among other actions, the elaboration of a diagnosis of the structure of the management of motorized dwarf mobility in the city. In other columns, I reiterated the fact that pedestrians walk all over the city, either on sidewalks or crossing streets, in inappropriate places, in addition to waiting for long traffic lights.

I also commented on the problems created by a fragmented and chaotic management structure, which occurs over spaces intended for pedestrian circulation, since the decisions on interventions are not unified. The creation of a body with management and deliberation power that manages the countless public spaces destined to everyone who walks on foot and circulates in a non-motorized way in the city is desirable and necessary. Walking, getting around by bicycle, skateboard, wheelchair, for example, even for a short journey, is something that every citizen does and should do it safely. Expecting dozens of departments to come together to create an action plan to ensure the well-being of those who walk on foot in cities is not feasible. The demands of these organizations will certainly transform São Paulo into an inclusive city, as the secretary wishes. As an urban planner and as a citizen, my dream is that mayors, secretaries, councilors and technicians work firmly in the purpose of extinguishing the visible inequalities between central (endowed with infrastructure) and peripheral areas (with precarious infrastructure), transforming, finally, São Paulo into a city indeed inclusive.

The right to the cultural memory: why we should be concerned with old buildings.

Townhouses, churches and even factories expose the identity of a place to the world; without preserving history, we lose our cultural identity and much of ourselves.

Abandoned townhouse in Vila Maria Zélia, north of São Paulo

The other day I saw on Twitter from a colleague some images of the facades of a building constructed in the early twentieth century and whose historical value, although evident, did not prevent total disfigurement, transforming it into a grotesque building, which looked more like a shoe box bumpy. The original facades, which were full of different ornaments, with tall, slender wooden windows, were replaced by a hideous floor tile. Some readers may be wondering why should we be concerned with old buildings? Preserving history for what? A townhouse, a church, a factory, a square, an entire neighborhood bear on the image and expose the history of people who lived in these places in the landscape. Their stories are all there, showing themselves in every detail, as if reminding current residents, the way they lived, worked, studied, and lived our predecessors, what their daily routines and social behaviours were. They remind us that much of what we are today we owe to all of them.

This is what we call memory. Each of these elements is a kind of link that connects us to the past, reminds us of who we are and where we came from. Each built space materializes the history of countless generations and brings, precisely for that reason, our history. Without the preservation of material (its artifacts) and immaterial (its stories and values) history, we lose our cultural identity and much of ourselves. But why is it that the de-characterization and demolition of Brazilian architectural, urban and landscape assets is so frequent? Any traveller loves to post photos in front of cathedrals, old buildings and squares of countries whose population and governments have public policies and financial incentives for the conservation and preservation of architectures and places built throughout an entire process of historical formation. My Greek ancestors, despite the economic difficulties that have plagued the country for decades, preserve their history through its monuments. Much of the country’s economy comes from tourism, which exposes its traditions and values ​​through architecture, its museums – which keep old objects -, from villages built hundreds of years ago, from its happy songs and dances, food, olive oils, wine and cheese. They are proud of their history and what they are. History has shaped them as a society and as individuals.

Although there are still several difficulties in dealing with the preservation of historical and cultural assets, it is possible to make some considerations on the subject here in São Paulo. In 2006, the city’s mayor enacted Law No. 14,223 and Decree No. 47,950, known as the Clean City Law. From it, many facades, previously covered by panels and promotional signs of all kinds, were removed, revealing the beauty of several old buildings that no one knew about. If it was difficult for the owners to work with smaller ads and some adaptations, the city and the population gained identity, as entire streets, built at the same time and with similar facades and volumes, were in sight, presenting the history of the place to all citizens. Associations that deal with communication, and that have the habit of systematically enveloping buildings and facades, try to change the law by complaining that, without the signs, no one sees stores. How can this argument? The population must always keep an eye on these attacks.

Urban development and historical preservation go together and depend on the will of the population and their performance before the government to happen. The definition of the types of intervention that cultural heritage can receive occur at three institutional levels: at the municipal (in São Paulo, through Conpresp), state (Condephaat) or federal (Iphan) levels. One of the instruments of preservation is the Historical-Cultural Goods Protection called in Portuguese – Tombamento, feared by property owners with historical value. The fear has its raison d’être: the processes for preservation are long, dragging in some cases for decades, resembling the processes sent to the Brazilian Judiciary; there is also a lack of dialogue and interaction between the three institutional instances, a situation that generates more delays. Have you ever thought about having to wait ten years or more for the appraisal and finalization of a process without being able to do anything with your property? Another harmful factor that can be added is the lack of participation by the public involved in the decisions and the prioritization of technical and aesthetic elements, which make the listed property cease to be a participative and articulated element in the city, losing its symbolism and character urban heritage. Resolutions taken exclusively by technicians tend to dissociate themselves from the reality of the citizen.

Another important issue regarding the preservation of cultural assets concerns the incentive policies for property owners who are known to have cultural value. After all, if the building is listed because the interest is public, the city hall, the State and the Union must offer counterparts, as they are interested in preserving the country’s culture and history. In São Paulo, with the approval of the PDE (Strategic Master Plan) in 2014, the conservation of the listed property becomes a condition for the use of the TDC (Transfer of the Right to Build), one of the instruments that can be used as a tool for obtaining resources for the rehabilitation, restoration, retrofit, requalification, and other projects, depending on the level of preservation of the property. In other words, the entire property has a constructive potential associated with the urban regulations of each city. When a property is listed, it is not able to take advantage of all the construction potential provided for in the laws due to the restrictions imposed by the listing. With TDC, owners can sell the unused construction potential to other properties in the city and invest the resources exclusively in the recovery of their own, as this is money intended only for this purpose. With the resources, it is possible to hire qualified technical labour and suitable materials to restore the property.

Finally, the tipping instrument should be just one of the elements that make up cultural preservation policies, but that is not always the case. When going through the restoration process, the works must comply with the other legal provisions that guarantee the safety and habitability of the building. One example is the AVCB (Fire Department Inspection Auto), a document that certifies the fire safety conditions provided for in legislation whose direct application is not always possible for buildings built in other centuries… Another example addresses the necessary accessibility issues to all areas of buildings. Despite the existing rules and legislation, which must be applied, it is necessary to build adequate solutions for each building in a particular way because the direct application of the law can lead the owner to incur a crime due to the mischaracterization of the property. It is up to the public authorities to resolve this set of issues to collaborate with access to information on existing incentives, as well as collaborate with programs that unify actions and streamline administrative processes and routines in the name of preserving the Brazilian cultural heritage.

Do you consider that the old buildings and public monuments in your city are well preserved?

Find out more in the column @helenadegreas https://buff.ly/3h7DMLw

The English version of this Report is a free translation from the original, which was prepared in Portuguese. 

O direito à memória cultural: por que devemos nos preocupar com edifícios antigos

Sobrados, igrejas e até fábricas expõem ao mundo a identidade de um lugar; sem a preservação da história, perdemos nossa identidade cultural e muito de nós mesmos

Coluna original publicada na Jovem Pan News

  • Por Helena Degreas
  • 04/05/2021 09h00 – Atualizado em 04/05/2021 09h14

Helena Degreas/Jovem PanSobrado abandonado na Vila Maria Zélia, zona norte de São Paulo

Outro dia vi no Twitter de um colega algumas imagens das fachadas de um edifício construído no início do século XX e cujo valor histórico, apesar de evidente, não impediu a descaracterização total, transformando-o num prédio grotesco, que mais parecia uma caixa de sapatos esburacada. As fachadas originais, que eram repletas de ornamentos diversos, com janelões de madeira altos e esguios, foram substituídas por uma cerâmica de piso medonha. Alguns leitores devem estar se perguntando por que devemos nos preocupar com edifícios antigos? Preservar a história para quê? Um sobrado, uma igreja, uma fábrica, uma praça, um bairro inteiro carregam na imagem e expõem na paisagem a história de pessoas que viveram nestes lugares. Suas histórias estão todas lá, evidenciando-se em cada detalhe, como que lembrando aos residentes atuais a forma como moravam, trabalhavam, estudavam e viviam nossos antecessores, quais eram suas rotinas cotidianas e comportamentos sociais. Nos fazem lembrar que muito do que somos hoje devemos a todos eles. https://e559759a5aafdabbd5995e3ed11c2810.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

A isso tudo, chamamos de memória. Cada elemento desses é uma espécie de elo que nos conecta ao passado, nos lembra quem somos e de onde viemos. Cada espaço construído materializa a história de inúmeras gerações e traz, justamente por isso, a nossa história. Sem a preservação da história material (seus artefatos) e imaterial (suas histórias e valores), perdemos nossa identidade cultural e muito de nós mesmos. Mas por que então a descaracterização e demolição de bens arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos brasileiros é tão frequente?  Qualquer viajante ama postar fotos em frente a catedrais, prédios antigos e praças de países cuja população e governos têm políticas e incentivos para a conservação e preservação de arquiteturas e lugares construídos ao longo de todo um processo de formação histórica. Meus antepassados gregos, apesar das dificuldades econômicas que assolam o país há décadas, preservam sua história por meio dos seus monumentos. Grande parte da economia do país vem do turismo, que expõe suas tradições e valores por meio da arquitetura, dos seus museus  — que guardam objetos antigos  —, de vilarejos construídos a centenas de anos, de suas músicas e danças alegres, comidas, azeites, queijos e vinhos. Eles têm orgulho de sua história e do que são. A história moldou-os como sociedade e como indivíduos.

Embora ainda existam dificuldades diversas para tratar a preservação de bens históricos e culturais, é possível tecer algumas considerações sobre o assunto aqui em São Paulo. Em 2006, o prefeito da cidade promulgou a Lei nº 14.223 e o Decreto nº 47.950, conhecidos como Lei da Cidade Limpa. A partir dela, muitas fachadas, antes encobertas por painéis e placas promocionais de todos os tipos, foram retiradas, revelando a beleza de vários edifícios antigos e que ninguém conhecia. Se para os proprietários foi difícil trabalhar com anúncios menores e algumas adaptações, a cidade e a população ganharam identidade, pois ruas inteiras, construídas na mesma época e com fachadas e volumes semelhantes, ficaram à vista, apresentando a todos os cidadãos a história do lugar. Associações que tratam de comunicação, e que têm por hábito envelopar prédios e fachadas sistematicamente, tentam alterar a lei reclamando que, sem as placas, ninguém vê lojas. Como pode esse argumento? A população precisa ficar sempre de olho nestas investidas.

Desenvolvimento urbano e preservação histórica andam juntos e dependem da vontade da população e de sua atuação frente ao poder público para acontecer. A definição dos tipos de intervenção que o patrimônio cultural pode receber ocorrem nos três níveis de poder: na esfera municipal (em São Paulo, por meio do Conpresp), estadual (Condephaat) ou federal (Iphan). Um dos instrumentos de preservação é o tombamento, temido pelos proprietários de imóveis com valor histórico. O temor tem sua razão de ser: os processos para preservação são longos, arrastando-se em alguns casos por décadas, assemelhando-se aos processos enviados para o Judiciário brasileiro; ocorre também a falta de diálogo e interação entre as três instâncias, situação essa que gera mais atrasos. Já pensou ter que esperar dez anos ou mais pela apreciação e finalização de um processo sem poder fazer nada com o seu imóvel? Mais um fator prejudicial que se pode acrescentar é a falta de participação do público envolvido nas decisões e a priorização dos elementos técnicos e estéticos, que fazem com que o bem tombado deixe de ser um elemento participativo e articulado na cidade, perdendo seu simbolismo e caráter patrimonial urbano. Resoluções tomadas exclusivamente por técnicos tendem a se dissociar da realidade do cidadão.

Outra questão importante sobre a preservação de bens culturais trata das políticas de incentivos aos proprietários de imóveis que reconhecidamente têm valor cultural. Afinal, se a edificação é tombada porque o interesse é público, a prefeitura, o Estado e a União devem oferecer contrapartidas, pois interessa a eles preservar a cultura e história do país. Em São Paulo, com a aprovação do PDE (Plano Diretor Estratégico) em 2014, a conservação do imóvel tombado passa a ser uma condição para o uso do TDC (Transferência do Direito de Construir), um dos instrumentos que podem ser utilizados como ferramenta para a obtenção de recursos para as obras de reabilitação, restauro, retrofit, requalificação e demais projetos, a depender do nível de preservação do bem. Dito de outra forma, todo o imóvel possui um potencial construtivo associados às regulações urbanísticas de cada cidade. Um imóvel, quando é tombado, não consegue usufruir de todo o potencial construtivo previsto nas leis em função das restrições impostas pelo tombamento. Com a TDC, os proprietários podem vender o potencial construtivo não utilizado para outros imóveis na cidade e investir os recursos exclusivamente na recuperação do seu, pois trata-se de dinheiro destinado apenas para esta finalidade. Com os recursos, é possível contratar mão de obra técnica qualificada e materiais adequados para restaurar o bem. 

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Por fim, o instrumento de tombamento deveria ser apenas um dos elementos que compõem as políticas de preservação cultural, mas nem sempre é o que ocorre. Ao passar pelo processo de restauro, as obras precisam atender às demais disposições legais que garantem a segurança e a habitabilidade do edifício. Um exemplo é o AVCB (Auto de Vistoria de Corpo de Bombeiros), um documento que certifica as condições de segurança contra incêndio previstas numa legislação cuja aplicação direta nem sempre é possível para imóveis construídos em outros séculos… Outro exemplo trata das necessárias questões de acessibilidade a todas as áreas dos edifícios. A despeito das normas e legislações existentes, que devem ser aplicadas, é necessário construir soluções adequadas para cada edifício de maneira particular pois a aplicação direta da lei pode levar o proprietário a incorrer em crime por descaracterização do imóvel. Cabe ao poder público resolver esse conjunto de questões de forma a colaborar com o acesso a informações sobre os incentivos existentes, bem como colaborar com programas que unifiquem ações e agilizem processos e rotinas administrativas em nome da preservação do patrimônio cultural brasileiro.

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Entra verão, sai verão, e é sempre a mesma coisa: começa a estação dos buracos nas vias mediocremente pavimentadas da capital, derrubando ciclistas, destruindo amortecedores e causando acidentes

  • Por Helena Degreas
  • 27/04/2021 09h00 – Atualizado em 27/04/2021 09h35

Helena Degreas/Arquivo PessoalPrefeitura se responsabiliza pelos buracos que nascem naturalmente e os que são fruto da má qualidade da massa asfáltica

Para chegar à estação de metrô ando diariamente cerca de 800 metros. O passeio é agradável, observo pessoas e seus cães, jardins de prédios, floreiras… Também vejo alguns tropeçando nos buracos das calçadas, e ônibus, bicicletas, motos e automóveis sofrendo do mesmo mal nas vias mediocremente pavimentadas. Recentemente, um colega chamou a minha atenção para o fato de que, pelo menos, minha rua é asfaltada e tem calçadas. E ele está certo: eu moro na área central. Se morasse em regiões mais distantes, não haveria nem asfalto nem calçada. Com as chuvas torrenciais que ocorreram no início deste ano, pude observar novamente as mudanças no asfalto. Entra verão, sai verão, e é sempre a mesma coisa: começa a estação dos buracos e das crateras. Em um destes dias, vi um fato novo: uma pequena fissura onde eu sempre atravesso a rua. Não sei bem o porquê, mas chamou a minha atenção. Vi quando ela nasceu. Era apenas uma fissura tão delicada no asfalto. Todos os dias, uma nova fissura surgia a partir dela. Com o passar do tempo, havia se formado o desenho de um raizame completo.

Um dia, pedi ao meu marido que me acompanhasse: queria apresentar-lhe a fissura. Ele se sentiu um pouco assustado com o convite, mas foi. Conheceu as fissuras em formato de raízes. Disse que eu estava sofrendo os efeitos da prolongada quarentena. Não estava não: era curiosidade misturada com raiva. Nas semanas seguintes, o asfalto começou a se romper, surgiu um buraco e o local afundou um pouco. Pensei: “Está na hora de eu chamar a prefeitura para consertar”. Deu preguiça. Quem sabe algum vizinho chama. Por que só eu tenho que chamar sempre? Ninguém chamou e, numa noite, um rapaz de bicicleta afobado para entregar uma refeição no prédio ao lado, não viu o tal buraco e caiu com a sacola de comida. Fui ajudá-lo a se levantar, estava bem, mas tinha perdido o pedido e a comida. Poucos dias depois, o buraco já estava com cerca de 5 centímetros de profundidade. A largura era variável, mas as fissuras estavam lá cada vez mais abertas. Em uma delas, estava nascendo grama. A vingança da natureza contra obras humanas mal construídas. Soube pelo porteiro que um carro não apenas perdeu a calota e teve os amortecedores destruídos, mas que também precisou ser guinchado ao passar pelo tal buraco. Era noite e o motorista foi surpreendido. Com o carro danificado, desceu aos gritos praguejando e xingando o prefeito, o vereador e todos os políticos que lembrou naquele momento (tem meu total apoio), responsabilizando-os pelos altos impostos e pelo serviço medíocre prestado aos cidadãos, proferindo um conjunto de frases e palavras que prefiro não transcrever aqui. Perdi a paciência e parti para o exercício da cidadania ativa. Matei a preguiça.

Em caráter emergencial e, na esperança de evitar futuros acidentes com vítimas fatais, pedi aos responsáveis pela obra situada em frente ao buracão que, gentilmente, cedessem um cone — daqueles grandes, altos, cor de laranja com faixas brancas, para colocar sobre ele. Depois de ouvi-los relatar detalhadamente as quedas de moto, bicicletas e calotas perdidas, os auxiliares da obra colocaram o sinalizador e, rindo, disseram que a prefeitura iria tapar o tal buraco com o concreto básico (não sei bem o que isso significava), mas que ele iria abrir rapidinho. Será, pensei? Não tenho nenhuma paciência para telefonemas longos que começam com: “Olá, boa tarde! Você ligou para a central SP 156, estamos todos trabalhando para…”. Desliguei. Deu preguiça novamente. Essa história iria levar, no mínimo, meia hora. Fui direto ao portal SP156.

Acessei a plataforma oficial. Bonita. Mas a forma de organização do site é pouco amistosa com o cidadão. São muitas informações organizadas em categorias no formato de “árvore”, ou seja, pressupõe que a pessoa saiba a sequência de informações para acessar o que está buscando. Não sou especialista em prefeitura e tampouco conheço a lógica de quem programou e diagramou o site. “Vai demorar. Mas tudo bem, vou ao menos tentar”, pensei. O buraco precisava de conserto. Entrei na categoria “Rua e Bairro”; depois em “Tapa buraco”; neste momento, fui direcionada para uma espécie de Manual de Instruções para solicitar o serviço da prefeitura. São 12 itens que, lidos, pretendem apresentar em quais circunstâncias o pedido deve ser realizado pelo cidadão, os prazos, as responsabilidades, entre outros temas. Li com atenção, levei muitos minutos. Já no segundo item denominado “O que é o serviço”, diz que trata-se de um conserto no asfalto em que o órgão responsável remove o asfalto velho ao redor do buraco e o preenche com asfalto novo. Completa informando que a prefeitura se responsabiliza pelos buracos que nascem, como aquele que eu descrevi até agora, naturalmente. Aqueles que são fruto da má qualidade da massa asfáltica, que são originários do péssimo serviço de implantação e conserto, são de responsabilidade dela. Os demais que são criados pela Sabesp, Cetesb e demais concessionárias (algumas dezenas delas) não são de sua responsabilidade. E agora? De quem era o buraco?

Fui até lá para ver a origem. Quem era o dono do buraco? Precisava saber se tinha nome. Nome não tinha, mas tinha uma tampa chamada “águas pluviais”. Estava claro que o afundamento era proveniente do comprometimento de galeria de águas de chuva. Os assistentes da obra continuavam ali, observando. Fui até lá. Perguntei se eles sabiam de quem era o buracão que, agora, já tinha se transformado em cratera. Era possível ver quase uma trincheira aberta, um vazio imenso, parecia o fundo de um poço. “A galeria não deu conta da chuva, dona. Não é só o asfalto, a senhora não está vendo que tem um monte de remendo de outras chuvas no chão?”, perguntou. De fato, estavam todos lá, sobrepostos uns aos outros. Agradeci. Voltei à plataforma. “Iniciar processo”. Cadastrei meu login e senha. Contei a tal história. Semanas depois, o buraco estava recapeado. Desta vez, os assistentes da obra em frente ao “craterão” me observavam. Esperavam por minhas perguntas e estavam mais curiosos com o enredo da novela do que com o seu conserto.

De cara um deles grita do primeiro andar da obra: “Eu não disse doutora? Os homens da prefeitura vieram aqui e rapidinho colocaram concreto em cima. Vai abrir de novo”. Final da história? Que nada! As fissuras retornaram firmes e fortes! Hoje pela manhã fui visitar o local: no entorno da tampa cimentada, tem um novo afundamento. Levei a minha fita métrica: 4 cm. Singelo ainda. Em breve eu, os assistentes da obra e o porteiro assistiremos consternados, a retomada da saga: “O retorno da cratera”, com o roteiro escrito pela Secretaria Municipal das Subprefeituras, a Direção da Prefeitura do Município de São Paulo e tendo como público pagante o cidadão do município de São Paulo. Certeza que vai ganhar a estatueta do Oscar!

Podcast: Praças e hortas nas alturas? Como as cidades estão criando novos usos para seus antigos telhados

Sou Helena Degreas e hoje vou comentar a coluna que escrevi nesta semana para a Jovem Pan News chamada de Praças e Hortas nas alturas ou ainda sobre como as cidades estão criando novos usos para seus antigos telhados. Ao transformar em espaços habitáveis para as populações, estas coberturas de edifícios permitem a incorporação de mais metros quadrados para recreação, lazer e até mesmo produção de hortas, pomares e miniflorestas urbanas. A coluna encontra-se neste link: bit.ly/3ndrJ0r