Você já tropeçou na calçada? Passeio público de São Paulo tem armadilhas que atrapalham o pedestre

Prefeitura determina que donos de imóveis se responsabilizem por conservação e manutenção dos pavimentos urbanos, mas esses serviços deveriam ser feitos por uma autarquia.

  • Por Helena Degreas
  • 23/02/2021 09h00 – Atualizado em 23/02/2021 09h36

Helena Degreas/Jovem PanDegraus altos em calçada da zona oeste dificulta a mobilidade

O leitor já deve ter percebido que caminhar pelas cidades brasileiras é um ato de coragem. Os calçamentos são geralmente sofríveis. Perdoe-me Carlos Drumond de Andrade, mas no meio do caminho o pedestre encontrará não apenas uma pedra, mas também um buraco, um bueiro solto, uma tampa fora do lugar, bancas de jornal, lixeiras, postes com fios pendurados de todas as empresas prestadoras de serviços urbanos… E quem cuida disso? A prefeitura? O cidadão? Essa é a questão. Citei as calçadas como se em todos os bairros, mesmo naqueles mais distantes das regiões centrais, o calçamento existisse. Quem já teve o privilégio de viajar para cidades de países próximos ao Brasil deve ter observado que os pisos têm um padrão uniforme, são lisinhos, bem cuidados. A mesma qualidade pode ser encontrada nos equipamentos públicos, mobiliário urbano e na distribuição da vegetação pelas calçadas.https://3076e2066e9aeb4502c0bcc0a16c521a.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html

Por que os locais por onde circula toda a população brasileira é tão malcuidado? Em algum momento, todas as pessoas irão colocar o pé na calçada. Ir à banca, passar na farmácia, comprar algo da padaria da esquina, tomar o ônibus, levar uma criança para tomar sol, o seu pet para passear ou mesmo sentir o vento no rosto e ver gente na rua: são comportamentos rotineiros para as pessoas e que são realizados a pé ou em cadeira de rodas, com ajuda de muletas por exemplo; mais cedo ou mais tarde, mesmo os mais fanáticos por seus carros, em algum momento também sentirão o prazer de andar pelas ruas de suas cidades. Mas até os bairros mais ricos apresentam calçadas, em muitos casos, vergonhosas…PUBLICIDADE

No dicionário, a calçada é descrita como “caminho ou rua com pavimento de pedra”. E foi assim que tudo começou por aqui. Pedra para calçar as ruas de terra e proteger os pedestres. Todas as cidades têm suas histórias e respectivas datas, mas, aqui em São Pauloas primeiras calçadinhas foram feitas no século XVII, quando a cidade ainda era uma província. Sua função era muito importante: proteger as casas da água e da lama que resultavam das fortes enxurradas. Só isso. Para ilustrar a situação, recorro a um pequeno objeto em ferro fixado no chão e colocado logo à entrada das casas mais antigas. Alguns já devem ter visto. O tal objeto servia para limpar o barro da sola dos sapatos dos visitantes e moradores antes de entrar na casa. Em várias cidades, e apesar de existir há muitos anos, o objeto permanece útil e funcional ainda hoje.

Guias para separar o que de fato era passeio público, calçadas do leito destinado à circulação, primeiramente de mulas e carroças, e posteriormente dos automóveis, aconteceram apenas nos séculos seguintes. Aos poucos, a cidade foi se adensando, se espalhando no território, novos serviços foram sendo instalados. Veio a energia elétrica, abastecimento de água, coleta de esgoto, coleta de águas pluviais, gás, bombeiros, cabeamento para serviços diversos na área de comunicação, além de bancas de jornal, bancosárvores, esculturas, semáforos e tudo o que o leitor lembrar. Enquanto escrevia a coluna, fiz uma lista do nome das empresas prestadores de serviços que estão nas calçadas em torno da minha casa: por volta de 40. Todas têm permissões dos governos federalestadual e municipal para atuar sobre o espaço público e prestar serviços essenciais à vida de quem mora nas cidades. Todas têm manuais próprios para procedimento de implantação, distribuição e manutenção de seus serviços.https://platform.twitter.com/embed/Tweet.html?dnt=true&embedId=twitter-widget-0&frame=false&hideCard=false&hideThread=false&id=1364192198791729154&lang=pt&origin=https%3A%2F%2Fjovempan.com.br%2F&siteScreenName=portaljovempan&theme=light&widgetsVersion=889aa01%3A1612811843556&width=500px

À título de exemplo, cito a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), vinculada à Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes da cidade de São Paulo. Sozinha, ela responde por 14 manuais que tratam da sinalização urbana. Cada uma delas deve ter procedimentos e ações próprias para cumprir com o padrão de qualidade de seus serviços. Como organizar essa situação? Embora em praticamente todo o país a responsabilidade pelas calçadas seja do munícipe, pergunto-me como é possível que indivíduos sejam capazes de cuidar de todos os agentes públicos que atuam e intervêm diretamente no espaço em frente ao seu imóvel. Como garantir padronização das larguras e uniformidade quanto ao tipo e qualidade de piso utilizado se o munícipe escolhe a partir de seus interesses? Como garantir que uma calçadinha seja responsável por todos os caminhos e situações pelos quais um pedestre passa ao longo de suas caminhadas? Respondo: não é possível.

Para resolver a situação, o prefeito Bruno Covas promulgou o decreto nº 58.611, de 24 de janeiro de 2019, que tem como objetivo padronizar as calçadas de São Paulo. Ficaram definidos como responsáveis pelas obras e serviços relativos à implantação, conservação e manutenção de calçadas os proprietários, possuidores de títulos de propriedade e condomínios. As permissionárias que anteriormente citei deverão reparar os danos causados às calçadas após realizado o serviço. O munícipe deve seguir o conjunto de documentos e manuais que estão disponíveis no site da prefeitura. Por experiência própria, posso afirmar que os reparos destas empresas são inadequados. Calçadas acessíveis, com guias rebaixadas localizadas nos pontos adequados ao atravessamento de cidadãos vulneráveis, pisos homogêneos com identidade visual estabelecida pela prefeitura, implantação de postes para iluminação adequada — tanto para o automóvel quanto para o pedestre—, localização adequada de tapumes de obras, bancas de jornal, lixeiras, sinalização de ruas e organização de todas as tampas de serviços das diversas empresas permissionárias e concessionárias, por exemplo, deveriam ser realizadas por uma autarquia responsável pela qualidade do espaço público, incluindo nele não apenas as calçadas, mas todas as áreas em que circulam pedestres e ciclistas.

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Para que isso aconteça, faz-se necessário o planejamento de um Sistema de Circulação de Pedestres como aquele previsto pelo Plano de Mobilidade de 2015. Andar a pé ou por meio de rodinhas demanda uma infraestrutura complexa, que envolve uma série de componentes que não se esgotam na Cartilha de Calçadas Acessíveis ou ainda no decreto promulgado pelo atual prefeito. Os componentes do Sistema de Mobilidade para Pedestres são compostos por calçadas, vias de pedestres (calçadões), faixas de pedestres e lombofaixas, transposições, passarelas e sinalização específica. Mais adiante, o artigo Art. 221 (Plano Diretor da Cidade de São Paulo, em seu Título 3 – Da Política e dos Sistemas Urbanos e Ambientais) define uma série de ações estratégicas que são de responsabilidade da prefeitura, destacando-se a definição de rotas (Rede de Mobilidade a Pé) para a implantação da padronização dos componentes do sistema de circulação de pedestres em locais de intenso fluxo com o objetivo de melhorar o acesso e deslocamento de qualquer pessoa com autonomia e segurança e, por fim, integrar o sistema de transporte público coletivo com o sistema de circulação de pedestres por meio de conexões entre modais de transporte, calçadas, faixas de pedestre, transposições, passarelas e sinalização específica, visando a plena acessibilidade ao espaço urbano construído. A circulação segura do pedestre depende da qualidade de todos os componentes que estão previstos no Sistema de Circulação de Pedestres definido pelo Plano Diretor e que ainda não estabeleceu a Rede de Mobilidade a Pé. Aguardamos por políticas públicas e verbas que, para além da PEC Emergencial, que visa melhorar as condições das calçadas, também defina políticas, planos e ações práticas para os pedestres da cidade de São Paulo.

Já correu uma maratona hoje? Experimente atravessar uma rua em São Paulo

Se você não é jovem, saudável e sem deficiências, provavelmente já passou pela estressante situação de apostar corrida contra o semáforo na capital paulista

  • Por Helena Degreas
  • 19/01/2021 09h00

Helena Degreas/Jovem PanCidadãos apertam o passo para conseguir completar a travessia em uma rua de São Paulo

Para aqueles que são adultos jovens, saudáveis e sem deficiências, atravessar a rua com o tempo semafórico destinado aos pedestres nos cruzamentos da cidade de São Paulo é moleza. Basta acelerar um pouco o passo e você chega na outra calçada rapidamente. Para os demais cidadãos, a história pode ser bem diferente.  Quantos metros você anda por segundo? Você consegue atravessar o semáforo de pedestres sem correr preocupado com um eventual atropelamento? Qual dos leitores já passou pela situação estressante de correr para atravessar a rua e perceber que o farol destinado ao pedestre ficou vermelho e você ainda não chegou do outro lado da calçada? Isso acontece porque os semáforos ajustam o tempo para evitar congestionamento de veículos. Dito de outra forma, não estão planejados para atender a velocidade de deslocamento das pessoas.https://53b1b23af142c0c538a0845591c7743b.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html

Um estudo realizado pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) constatou que 97,8% das pessoas com mais de 60 anos da cidade de São Paulo não conseguem atravessar a rua no tempo dos semáforos. Essa situação por si só é muito grave, pois amplia o risco de atropelamento que resulta em óbito. Levantamento realizado pela prefeitura do município aponta que os idosos representam cerca de 15% da população paulistana e são as principais vítimas de atropelamentos. Para esse grupo, o caminhar é mais lento, a mobilidade vai ficando cada vez mais reduzida. As mortes que ocorrem em travessias próximas a hospitaisigrejas, centros de saúde e em bairros onde predominam uma população mais velha são previsíveis. Trata-se de estatística e georreferenciamento urbano. Novamente, cito a plataforma GeoSampa, que mapeia todos os acidentes na cidade. Sugiro uma consulta.

A mobilidade reduzida não é resultado apenas do processo natural de envelhecimento da população. Ela inclui também as crianças pequenas, que obviamente não andam na velocidade de adultos, os usuários de cadeiras de rodas, que locomovem-se em condições especiais e ainda sofrem com a falta de manutenção das ruas, as pessoas carregando carrinhos e até gente que, como eu, andam com a “cabeça nas nuvens” ou distraídas com o celular na mão. A pesquisa apontou que os idosos caminham a 2,7 quilômetros/hora ou ainda, 0,75 metros/segundo. O tempo de programação dos semáforos foi planejado para 1,2 metros/segundo ou, ainda, 4,3 quilômetros/hora pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-SP), em média. Com estes números, fica claro que alcançar a outra calçada caminhando tranquilamente é inviável dependendo do grupo do qual você faz parte. Para melhorar as condições de caminhabilidade, foi lançado ano passado, em São Paulo, o Estatuto do Pedestre, que prevê várias ações que deverão ser adotados pelos órgãos municipais responsáveis. O estabelecimento de metas e cronogramas fica a critério dos órgãos envolvidos. Depende de prioridades políticas que associam verbas às metas e ações. Dentre as diretrizes apresentadas no estatuto, destaca-se a requalificação do sistema semafórico com a ampliação dos tempos para travessia em locais com grande concentração de pedestres e a inclusão de equipamentos com sinal sonoro, tão comum em outros países. Apesar de previsto, o plano ainda encontra-se em processo de implantação. 

O Sr. Élio Bueno de Camargo é um dos vários membros que representam os interesses dos pedestres na cidade de São Paulo junto à Câmara Temática de Mobilidade a Pé (Rede Butantã). Nas reuniões mensais, ele cobra da prefeitura um papel ativo e mais ágil na solução dos problemas que envolvem os semáforos da cidade, defendendo que os tempos semafóricos sejam ajustados às necessidades da população em todo o território da cidade, e não apenas ao fluxo de veículos. Em relação às mortes por atropelamento, salienta que é necessária uma ação pública mais descentralizada na prevenção dos acidentes, já que ocorrem em todo o território urbano.

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Cidades como Londres e Barcelona ampliaram o tempo semafórico destinado ao pedestre visando reduzir o risco de atropelamentos da população em geral. A velocidade adotada é de 0,9 metros/segundo para todos os semáforos. Essa e outras inciativas estão previstas nos planos de mobilidade e são, portanto, prioridade dos prefeitos. A população está envelhecendo e é desejável que o caminhar do cidadão seja tratado de maneira diferenciada. A priorização de políticas e ações voltadas à revisão da infraestrutura que envolve a mobilidade das pessoas é fundamental para uma cidade que pretende zerar as mortes por atropelamento.

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coluna originalmente publicada aqui

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Governo estadual entende lazer da população apenas como um prejuízo contábil, mas a cidade é muito mais do que shoppings, apartamentos short/long stay e coworkings

Por Helena Degreas

12/01/2021 09h00 – Atualizado em 12/01/2021 14h47

Divulgação/Secretaria de EsportesEdital de concessão do complexo do Ibirapuera prevê a possibilidade de demolição de todos os equipamentos esportivos do local

O recente edital proposto pelo governador João Doria que prevê a concessão do Conjunto Esportivo Constâncio Vaz Guimarães, conhecido como Complexo Desportivo do Ibirapuera, prevê a construção de uma arena e a possibilidade de demolição de todos os equipamentos esportivos do local. Em dezembro, a juíza Liliane Keyko Hioki, da 2ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, alegou que o processo licitatório é precipitado e feito sem análise sobre se o projeto apresentado pelo poder público realmente atende ao interesse público. O que se entende por interesse público? Quem é o público interessado? Muitas questões estão envolvidas e algumas delas podem não representar o interesse da população diretamente afetada: os usuários do complexo.

As declarações de Doria e de seu secretário de Esportes, Aildo Ferreira, defendem que não faz sentido gastar dinheiro público para manter uma “estrutura obsoleta, defasada, que atende muito mal os atletas de São Paulo”. O governador acrescenta que todo o conjunto gera prejuízo aos cofres públicos no montante de R$ 10 milhões. Dito de outra forma, entende-se que o complexo pode ser demolido sem prejuízo algum para a cidade e seus habitantes. Discordo e destaco duas das questões que considero fundamentais: o processo de tombamento de um complexo desportivo como necessário à preservação de um marco da cidade e a outra, que trata do conceito de interesse público.

 

Apesar do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) ter rejeitado o pedido de tombamento do Complexo Desportivo Ibirapuera, é importante ressaltar que a atual composição de seus membros foi alterada também pelo atual governador, reduzindo o papel das universidades e da população, por exemplo. A abertura de um processo de tombamento de um bem público permite que o povo reflita e atue diretamente sobre os destinos de um lugar que é utilizado por diferentes grupos sociais desde a década de 1950. A partir da participação popular nas decisões sobre o papel desempenhado por este complexo, seria possível proceder às reformas que atendam às necessidades e expectativas de um espectro social mais amplo, e não restrito a agentes públicos e empresas privadas. Além do mais, o instrumento de tombamento autoriza o concessionário a realizar reformas e remodelações que adequem as edificações, as novas funções e o uso contemporâneo de atletas e da população em geral. Como exemplo, a prefeita de Paris, Anne Hidalgo anunciou nesta semana a transformação do Champs-Élysées em um imenso jardim para uso da população. Ela está preocupada com a vida dos cidadãos em seus espaços públicos. A proposta é resultado de uma ampla consulta realizada junto à população e que representará a vontade dos parisienses. 

Já em São Paulo, a proposta para o novo empreendimento foi realizada por meio de um contrato celebrado entre o governo estadual a Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe). Os estudo para a modelagem comercial geraram o Documento Referencial para a concessão de uso do complexo desportivo “Constâncio Vaz Guimarães” e construção de arena multiuso. Ele descreve os novos usos previstos para a viabilização do negócio: arena multiuso (20 mil pessoas, com 45 mil m²), atividades esportivas (clube desportivo pago e áreas externas para uso livre, com 4.880 m²), comércio, serviços e shopping (lojas âncora, megalojas, lojas satélites, conveniências/serviços/entretenimento, quiosques, com 31.780 m²), hotel e residencial com serviços (200 unidades habitacionais e 181 apartamentos short/long stay), edifício multiuso (13 pavimentos de lajes corporativas, salas comerciais e espaços de coworking, totalizando cerca de 10 mil m²) e estacionamento (3.365 vagas). O programa de atividades e usos foi criado por uma empresa sem a participação da população ou outros grupos que atuam pela preservação dos bens culturais. Diferentemente da prefeita Anne Hidalgo, o governador João Dória entende a cidade como um campo fértil para a geração de novos negócios.

O Documento Referencial descreve a contrapartida oferecida aos cidadãos: em troca da construção do novo empreendimento, a população poderá usufruir gratuitamente de quatro quadras abertas. Em troca do direito de construção e exploração comercial durante a vigência da concessão de uma área cobiçada por empresas do ramo imobiliário, o empreendedor oferece ao cidadão uma área inferior a 3.000 m². Não é preciso muito esforço para perceber o quão desproporcional é a relação custo-benefício que envolve a contrapartida apresentada no documento. Entendo que faz-se necessária uma revisão urgente da situação apresentada pelo edital, pois os equipamentos propostos estão aquém daqueles que hoje já são oferecidos pelo atual complexo de forma gratuita aos cidadãos.

Recreação, lazer e espaços de vida pública são temas contemporâneos e estão na pauta das agendas de discussão urbana internacional, pois afetam diretamente a saúde física, mental e qualidade da vida de todas as pessoas. O edital de concessão deixa claro que tanto o governador João Doria quanto o secretário Aildo Ferreira tratam o direito ao tempo livre e à recreação da população como prejuízo contábil porque entendem que as questões relacionadas à cidade precisam ser tratadas como negócios. É um ponto de vista que me permito, como cidadã, discordar. A cidade é mais do que um shopping center, apartamentos short/long stay e coworking. A cidade é feita por pessoas e, como tal, deve ser planejada para sua fruição, sem custos adicionais ou venda de ingressos para acesso às oportunidades de entretenimento e recreação. Prover espaços livres públicos e de qualidade para o lazer de diversos grupos sociais é uma função de governos, não de empresas.

Para o arquiteto e pesquisador em patrimônio cultural Dr. Antônio Soukef Júnior, “o fato de o conjunto apresentar problemas de conservação, por falta de manutenção preventiva, não pode ser o principal argumento para sua destruição, pois sua importância histórica e cultural se sobrepõe à sua perda. Mais do que um complexo desportivo, ele deve ser pensado do ponto de vista urbanístico, já que se trata de um conjunto composto pelo Parque do Ibirapuera, a Assembleia Legislativa e o QG do II Exército”. Acrescenta ainda que “perder um conjunto esportivo que cumpre há décadas uma função social indispensável na formação de esportistas a fim de substituir o espaço por hotéis e demais empreendimentos imobiliários, sob o pretexto da obsolescência da ocupação original, parte de uma premissa simplista, que não leva em conta todos os fatores que deveriam ser pensados”. 

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Ao defender a substituição das arquiteturas existentes em função do mau estado de conservação e inadequação aos programas funcionais contemporâneos, o governador e seu secretário erram duplamente: primeiro ao demonstrar um profundo desconhecimento sobre a arquitetura e urbanismo modernistas brasileiros, sua importância na construção da identidade e da memória da cidade. Em segundo lugar, um profundo desrespeito à população por permitir a oferta de contrapartida vil face aos usos atuais e também por desconsiderar todos os abaixo-assinados e cartas públicas de instituições que defendem nosso patrimônio construído e que são contrários às políticas públicas que priorizam a cidade como negócio em detrimento dos seus cidadãos.

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Coluna originalmente publicada aqui

E se, no lugar das vagas de estacionamento nas ruas, a prefeitura construísse pracinhas para a gente se sentar?

Transtorno para o motorista ávido por largar sua propriedade privada (leia-se carro) em espaço público, pago ou não, o fato é que os chamados parklets são verdadeiros oásis no dia a dia do cidadão

  • Por Helena Degreas
  • 22/12/2020 08h00

Helena Degreas/Jovem PanOs parklets, pequenas extensões da calçada sobre vagas de automóveis, estão se espalhando pelo Brasil

E se no lugar das vagas de estacionamento nas ruas, as calçadas fossem ampliadas com jardins floridos, guarda-sóis e bancos para que a população pudesse sentar-se, ler um livro, descansar com seu pet, tomar um café no intervalo do trabalho, observar as outras pessoas ou simplesmente ler as notificações nas redes sociais em seus celulares? Parece absurdo, não é? Nem tanto. Prefeitos estão redesenhando suas cidades para que as pessoas possam usufruir dos espaços públicos. Para quem teve a oportunidade de viajar para outros países ou para os fãs de seriados estrangeiros, não é incomum ver calçadas lisinhas com pequenas extensões localizadas sobre vagas de automóveis. Podemos chamá-las de arquiteturas temporárias. No Brasil, recebem o nome de parklets e hoje se espalham em todo o território nacional. Embora sejam criadas e mantidas por estabelecimentos comerciais, desde que seguidos os manuais e a legislação vigente, podem ser eventualmente utilizadas por cidadãos.

Recentemente, a Prefeitura de São Paulo, à exemplo de outras cidades no Brasil e no mundo, abriu uma consulta pública com o intuito de saber a opinião do cidadão sobre o uso de calçadas e vagas de estacionamento de automóveis para o atendimento de bares e restaurantes locais, estendendo o espaço físico disponível da área de serviço interno dos estabelecimentos sobre a rua durante os períodos de pandemia e pós-pandemia. Dito de outra forma, as novas “pracinhas” passam a ter uso comercial para atender os clientes dos restaurantes. O conceito é bom e deve ser ampliado, mas é preciso que esta proposta se desenvolva paralelamente à ampliação das áreas de calçadas sobre as vagas de automóveis, oferecendo espaços livres públicos de qualidade para o cidadão não vinculados ao consumo destes estabelecimentos. Curiosamente, a prefeitura não disponibilizou paralelamente uma consulta pública para perguntar ao paulistano se ele deseja também pracinhas públicas, com bancos e jardins, sobre estas mesmas vagas. Por que não o fez? PUBLICIDADE

Calçadas são parte dos espaços livres de vida do cidadão quando fora de casa ou do trabalho e não devem ser tratadas predominantemente como produto comercializável e com retorno financeiro. A cidade de Nova York foi citada nesta mesma consulta pública como fonte de inspiração e exemplo para o programa. Verdade seja dita: estes espaços existem, mas são parte de um plano de mobilidade urbana que prioriza a segurança e o bem-estar dos cidadãos, composto por mais dez outros programas que incluem: fechamentos temporários e permanentes de faixas de automóveis e ruas inteiras, distribuição de bancos por toda a cidade, intervenções e redesenho de sistemas viários como esquinas e travessias, redes de circulação de pedestres, bairros calmos, com redução de velocidade onde predominam idosos, iluminação viária direcionada ao pedestre e sistema de comunicação visual urbano.


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Como os demais cidadãos que andam pelas cidades brasileiras, aguardo ansiosamente para que os projetos, programas e ações promovidos pela Prefeitura de São Paulo nas calçadas priorizem o bem-estar e a segurança das pessoas, disponibilizando a oferta não apenas das novas “pracinhas comerciais”, conhecidas como parklets, mas também todas as demais ações propostas pela cidade de Nova York que serviram de inspiração para a consulta pública. Que a inspiração se materialize rapidamente na forma de ações práticas à cidade de São Paulo em 2021. O cidadão agradece.

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