Nem toda cidade é um cartão postal

Se tem algo que me tira do sério são as imagens minuciosamente escolhidas por peças publicitárias para apresentar as maravilhas que as cidades brasileiras têm a oferecer aos turistas nas férias escolares

Por Helena Degreas
 09/07/2024 13h32 – Atualizado em 09/07/2024 13h35

Reproduçao Youtube @Visit OSLO

De forma irônica e de humor levemente ácido, a campanha parece questionar a relevância, a importância ou o potencial do local para agradar ao público

Se tem algo que me tira do sério são as imagens minuciosamente escolhidas por peças publicitárias para apresentar as maravilhas que as cidades brasileiras têm a oferecer aos turistas durante o período de férias escolares. Elas prometem a experiência da felicidade, do bem-estar e da aventura por meio de paisagens deslumbrantes com pessoas sorrindo de forma exagerada, quase falsa. Como uma marca registrada, as imagens são projetadas para lembrar emoções positivas e criar uma associação direta entre o destino e momentos felizes. Mas será que esse clichê ainda funciona? Todos nós já vimos esses anúncios. Tenho a impressão de que os criadores destes anúncios desistiram, há muito, de criar. Recentemente, assisti a uma anúncio de Visit Oslo, (NewsLab) destinado a alavancar a visitação de turistas para a cidade de Oslo, capital da Noruega, por meio de uma abordagem, no mínimo, peculiar. Atormentado pelo tédio, um morador apresenta a cidade a partir do seu olhar desanimado com as situações cotidianas que vivencia dia após dia. A certa altura, sentindo um pouco de nojo, observa pessoas animadas saltando nas águas do rio que atravessa a cidade e, pergunta-se algo como “Isso é mesmo uma cidade?” ou ainda, “não tem nada exclusivo, é tudo tão disponível…”. De forma irônica e de humor levemente ácido, a campanha parece questionar a relevância, a importância ou o potencial do local para agradar ao público.

É como se, nas palavras dos criadores da peça “anti-publicitária”, um guia turístico que, em vez de deslumbrado, mostra-se levemente entediado mostra os pontos turísticos com um suspiro, mencionando vez e outra, algumas frases como “essa é mais uma das famosas estátuas de Gustav Vigeland… se é que você se importa.” É uma abordagem que parece dizer: “Olha, sabemos que já viu milhares de fotos de lugares perfeitos. Venha ver algo real.” É uma estratégia que, “ao desafiar as expectativas, cria um contraste intrigante com as campanhas tradicionais, gerando curiosidade e interesse.” A cidade de Oslo decidiu que não queria mais esse tipo de associação para trazer turistas. Cansada de se perder na homogeneidade das campanhas tradicionais e, com uma pitada de humor, a resolveu inovar.

Fonte: newslab.no

Cidades são feitas pelas pessoas e para as pessoas ou, ainda, deveriam ser. As campanhas tradicionais tendem a ignorar a complexidade e a fragmentação das cidades, apresentando uma imagem idealizada, homogênea, parcial e, em alguns casos, chegam a vender estereótipos. Narrativas idealizadas, não necessariamente, cidades.
Campanhas turísticas tradicionais, como as do Rio de Janeiro e São Paulo, costumam destacar apenas os pontos turísticos mais conhecidos e glamourosos, como as praias cariocas, o Cristo Redentor, o Carnaval e a Avenida Paulista. Essa abordagem, embora eficaz para atrair turistas, cria uma imagem superficial e irrealista, ignorando a diversidade, as contradições e os desafios socioeconômicos presentes nessas cidades. No sentido contrário àsrepresentações idealizadas, abordagens mais autênticas, como a da campanha de Visit Oslo, buscam mostrar um retrato mais fiel e crítico da realidade urbana. Reconhecer as nuances e complexidades de uma cidade, incluindo seus problemas e desigualdades, pode gerar uma conexão mais profunda com o público e atrair visitantes que buscam experiências mais genuínas e significativas.


Afinal, as cidades são muito mais do que cartões postais e atrações turísticas. São espaços vivos e dinâmicos, marcados por contrastes e contradições. Ao abraçar essa complexidade, as campanhas turísticas podem oferecer uma visão mais completa e honesta, convidando os visitantes a explorar não apenas a beleza, mas também a alma e a identidade de cada lugar. Contar histórias envolventes que capturam a essência de um lugar e sua cultura pode ajudar a criar uma conexão emocional com os potenciais turistas. Narrativas complexas e personagens locais podem proporcionar uma visão mais profunda e interessante do destino. Apresentar um contraste entre o que é geralmente conhecido e o que é surpreendente ou desconhecido sobre um destino pode captar a atenção e desafiar preconceitos. Isso pode incluir revelar segredos locais, atrações menos conhecidas ou aspectos culturais únicos. Viajar é muito mais do que tirar fotos instagramáveis em pontos turísticos. É sobre vivenciar experiências únicas, conhecer novas culturas e se conectar com as pessoas e os lugares que visitamos. Isto é uma cidade. A imperfeição, o diferente, o inusitado não são apenas aceita e toda a experiência vivenciada, é celebrada.

Cada cidade, cada lugar tem uma história única para contar.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

Até turistas são afetados quando espaços públicos de uma cidade perdem sua autenticidade

Dia desses, observei a decepção de dois casais de fora ao não encontrarem a confeitaria que tanto amavam; episódio ilustra como a homogeneização da paisagem impacta não apenas os moradores

Por Helena Degreas 09/03/2024 08h00 – coluna originalmente publicada para a JovemPanNews

Turistas de Porto Alegre posam para foto em frente à Catedral da Sé, no centro de São Paulo – VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO CONTEÚDO

Saio pouco de casa. No passado, nem tão distante, costumava ter quatro ou cinco compromissos ao longo do dia, em decorrência de uma rotina que me impus, seja pelos diversos empregos, seja pelas atividades triviais e cotidianas relacionadas à vida. Para me deslocar, usava o carro, privilégio de poucos, confesso. Ao longo dos anos, por prescrição médica, virei andarilha. Perfeita flâneur, desenterrei meu lado bisbilhoteiro e descobri-me enxerida nata. Ouvir a conversa dos outros é, para mim, abrir a caixa de Pandora: eu não consigo imaginar a surpresa que me aguarda nas conversas entre desconhecidos.

Dia desses, vejo dois casais parados em frente a uma longa fileira de tapumes. “Não tem nada aí para olhar”, pensei, “o que estarão fazendo?”. Cheguei mais perto. “Mor… cadê aquela confeitaria gostosinha? Não é aqui?”. “Ué” diz o moço, “não entendi. Acho que a gente errou o lugar”. O outro casal: “Não… tenho certeza, é aqui sim… é do lado daquela loja fechada que a gente comprou uns artesanatos, lembra? Parece que andaram cortando as árvores grandes também”. Suspirando, a outra moça reclama: “Não é mais o lugar que a gente vinha pra conversar. Vão construir prédio”.

“Claramente turistas”, pensei. Os dois casais se afastaram em busca de algum lugar que lhes proporcionasse a mesma sensação boa da tal confeitaria. Identidade do lugar e memória afetiva seriam as expressões que, numa sala de aula, utilizaria para explicar a situação de conforto, felicidade e prazer vivenciado em bons momentos e lembranças que acontecem em espaços públicos, na rua, na praça, no parque, na praia. As duas confeitarias destacavam-se pelo doces artesanais. Nada excepcional. Eu mesma parava, vez e outra por ali, para tomar um simples capuccino, que nem era tão bom assim, por um par de horas, simplesmente para ver pessoas, ouvir conversas alheias e colocar meus pensamentos em ordem. Respirar, enfim. O fato é que não eram franquias que vendem tudo igual em qualquer lugar e, também, não exibiam nenhum ranqueamento 5 estrelas nas paredes. O “chef”, basicamente, era o proprietário do estabelecimento que pensava assar bons bolos, doces e biscoitos. Por décadas, fez isso e vendeu muito com suas receitas. Deixou muita gente feliz. Eu era uma delas. Os dois casais também.

Concordo com as palavras da pesquisadora. Quando os espaços públicos perdem sua autenticidade, aquilo que os torna únicos, tornando-se genéricos e estandardizados, a atração para turistas em busca de vivências únicas é comprometida. Isso resulta em uma diminuição do potencial turístico dessas áreas, afetando negativamente toda a economia local que depende desse fluxo de visitantes em busca de autenticidade cultural. Não sei o nome das pessoas com as quais compartilho as experiências cotidianas durante minhas andanças por aí, mas conheço-os, entendo seus hábitos, reconheço suas roupas e, em alguns casos, compartilho rotinas e lugares onde faço compras, ajusto roupas, conserto sapatos, faço mercado, tomo sorvete, compro pão ou desembraço os pensamentos enquanto tomo um café. Agora não mais. Turistas e eu, moradora, estamos sofrendo a perda sistemática de nossas memórias afetivas vinculadas ao lugar em que estamos quer como moradores, quer como visitantes que desejam conosco compartilhar hábitos e costumes locais. Peculiaridades essas que enriquecem tanto a vivência quanto a experiência urbana.

Políticas públicas de alcance global e generalista, desvinculadas da realidade local, resultam frequentemente em ações locais desastrosas. Isso conduz a perdas irreversíveis de espaços tradicionais, descaracterizando trechos da cidade e bairros inteiros, prejudicando não apenas o que é visível, mas também o tecido social e sua cultura material e imaterial, elementos que definem cada comunidade. 

E, para definir uma comunidade, a colaboração, como mencionei na coluna passada, depende da atuação no processo de envolvimento para a criação e produção dos diversos stakeholders ou, ainda, associações de bairro, coletivos, comerciantes, organizações não governamentais junto com governos e empresas para criar políticas que identifiquem as qualidades locais e que podem contribuir para o desenvolvimento econômico. Trata-se de um processo trabalhoso que envolve a atuação constante, sistemática e permanente dos agentes públicos que ocorre por meio da realização de consultas públicas, workshops e reuniões de trabalho contínuas que só terminam com um consenso de todos os envolvidos. Estas ações são indispensáveis para definir de ações e estratégias que irão aprimorar a qualidade da vida dos que residem e, a partir daí, destacar as peculiaridades que fazem daquele lugar, daquela esquina ou daquela rua, únicos. Apenas desta forma a mitigação de problemas resultantes do processo e transformação podem ser acordadas por todos.

A recente experiência de um casal de turistas, buscando em vão uma confeitaria querida, ilustra como a homogeneização da paisagem e a descaracterização de espaços públicos que conferem vida à cidade afetam não apenas os moradores, mas também os visitantes em busca de autenticidade. A colaboração entre diversos stakeholders, incluindo moradores, comerciantes, organizações não governamentais e governos, torna-se essencial para criar políticas que valorizem as qualidades locais e contribuam para o desenvolvimento econômico, social e ambiental. Portanto, preservar a identidade local não é apenas uma questão meramente estética, mas um investimento na riqueza cultural e no bem-estar das comunidades, garantindo um futuro mais autêntico e sustentável para as cidades.

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