Como serão as cidades após a pandemia da Covid-19

Construir habitações e comércios distantes das áreas inundáveis e prover saneamento básico em regiões periféricas podem reduzir os riscos associados à transmissão de doenças contagiosas

Helena Degreas/Jovem PanA população mais afetada pela Covid-19 é justamente aquela que reside em locais mais distantes dos centros urbanos e utiliza o transporte público

Pestes, epidemia e pandemias foram responsáveis pelas mudanças na maneira como vivemos nas cidades. Fatores associados à saúde humana e ao urbanismo estão intimamente ligados ao planejamento de políticas públicas relacionadas à forma urbana e à implantação de infraestruturas sanitárias. Historicamente, aquedutos subterrâneos ou sobre a superfície foram construídos para conduzir água potável para as civilizações da antiguidade. Os romanos conseguiram desenvolver um sistema de abastecimento que envolvia 11 aquedutos tendo, o maior deles, cerca de 90 km de extensão. Ruas drenadas e pavimentadas, latrinas, cisternas, banheiras, instalações hidráulicas foram encontradas em ruínas civilizatórias que datam de mais de 3 mil anos antes de Cristo na Índia, Paquistão, Mesopotâmia e Egito

Hipócrates, conhecido como o patrono da medicina, descreve em seu tratado “Aeron Hidron Topon” as relações causais entre fatores relacionados ao meio físico e doenças  — ou ainda entre questões sanitárias e saúde da população  —, classificando as águas para uso humano e recomendando ao povo grego o afastamento da sujeira e a utilização de água pura para consumo. Vários outros exemplos sobre formulação de políticas públicas sanitárias adotadas ao longo dos séculos de constituição das cidades podem ser citados: desde a criação de espaços livres como praças e parques, para atender aspectos sociais e ambientais, até a definição de critérios técnicos como projeto, construção, licenciamento, fiscalização, manutenção, monitoramento e localização de cemitérios visando impedir a contaminação da qualidade do solo e das águas subterrâneas por eventual infiltração dos fluidos decorrentes do processo de decomposição dos corpos.

A peste bubônica levou ao planejamento de espaços públicos mais amplos, limpos e saudáveis. No renascimento, esboços de Leonardo da Vinci apresentam a Cidade Ideal formada por um conjunto de vias reticulares, edifícios com altura e densidade adequadas à dimensão das ruas para garantir boa luminosidade e ventilação, além de sistemas de esgotos e distribuição de água potável à população. A adoção de critérios sanitários para o planejamento de uma cidade com foco nas boas condições de insolação e ventilação (organização de espaços públicos projetados para acolher a circulação de pessoas e mercadorias), a definição da localização de habitações e comércios distantes das áreas inundáveis e a previsão de sistemas de esgoto e abastecimento de água potável criaram as condições sanitárias para a redução de riscos associados à transmissão de doenças contagiosas. Não é nenhuma novidade. 

De Leonardo da Vinci aos dias atuais, estas são algumas das práticas de planejamento e projeto que devem ser seguidas. Mas como ficam as regiões periféricas nos grandes centros urbanos? Se quisermos tratar nossa população e evitar as transmissões do novos vírus que ainda estão por vir, precisaremos implantar os conceitos de cidade ideal nestas regiões urgentemente. Melhorias e instalação de infraestrutura e equipamentos públicos em regiões centrais são recorrentes nos meios de comunicação: pistas cicláveis, alargamento de calçadas, parklets, jardins de chuva, muros verdes, entre outros programas e projetos “sustentáveis”, espalham-se em bairros nobres. Na cidade de São Paulo, é possível pesquisar informações como estas na plataforma GeoSampa.

No Brasil, as profundas desigualdades sociais materializam, na paisagem, extensas periferias que abrigam cidadãos precariamente. Muitos à margem das regulações urbanísticas e outros em aglomerações subnormais (favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas) moram em assentamentos irregulares e são marcados pela carência de serviços públicos essenciais como o de abastecimento de água, coleta de esgoto, coleta de lixo e fornecimento de energia elétrica. A ausência de ações concretas para o pronto atendimento de demandas, muitas delas sanitárias, afeta negativamente a vida de 5,17 milhões de domicílios distribuídos em 13.151 aglomerações em todos o país. 

A distribuição desigual de serviços públicos e infraestruturas nas cidades são características marcantes das políticas públicas urbanas e, quando analisado critério de localização no território urbano, é possível constatar que a alta incidência de infecção e mortes ocorre de maneira desigual: a população mais afetada é justamente aquela que reside em locais mais distantes dos centros urbanos e utiliza o transporte público como meio de locomoção e, mais recentemente, de contaminação pela Covid-19. A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik (professora da FAU-USP e do LabCidade) aponta a desigualdade como fator decisivo para determinar a população mais vulnerável ao contágio do coronavírus no Brasil. Destaca que são os trabalhadores de serviços essenciais, entre outros, que, ao viabilizar o isolamento social de parte da sociedade, são os primeiros a se contaminar graças às aglomerações que ocorrem nos vagões de trensmetrôsônibus e vans

A revisão do processo de planejamento urbano deverá atender e assegurar uma melhor distribuição de serviços, equipamentos públicos e infraestrutura de forma equitativa em território priorizando suas ações nas áreas periféricas e nos aglomerados subnormais. Planejar cidades resilientes a eventos extremos climáticos e sanitários, como este que estamos enfrentando agora, significa que prefeitosvereadores e técnicos públicos voltem suas ações para a promoção de moradias em áreas com infraestruturas e equipamentos públicos consolidados e conectados a um sistema de mobilidade urbana (modo ativo e motorizado público) eficiente, inclusivo e eficaz para a sociedade. 

Pandemia muda a forma como os governos tratam os espaços públicos

Atualmente, a regra é caminhar com uma boa distância entre as pessoas, mas como fazer isso em cidades cujas calçadas são estreitas?

  • Por Helena Degreas
  • 14/12/2020 14h56 – Atualizado em 14/12/2020 16h030

Conceito de calçada deve ser repensado como um espaço de locomoção que precisa ser projetado pelo corpo de profissionais das prefeituras

Com o avanço da contaminação provocada pelo coronavírus, prefeitos do mundo todo adotaram planos para o distanciamento físico da população como ação necessária para proteger os cidadãos em espaços públicos. Cones, fita e tinta são alguns dos instrumentos utilizados para viabilizar o distanciamento social imposto pela Covid-19. Se no século passado bairros inteiros foram cortados por ruas e avenidas para expandir a malha de circulação do automóvel particular, reservando uma estreita faixa para a locomoção do pedestre, o século XXI é marcado por ideais de sustentabilidade que impactam a mobilidade dos centros urbanos. “Cidades pensadas para pessoas” deveria ser o lema dos gestores públicos brasileiros e, em especial, prefeitos. Mais do que “calçamento de pedras sobre via de terra”, o conceito de calçada deve ser repensado como um espaço de locomoção que precisa ser projetado pelo corpo de profissionais das prefeituras e mantido pelo poder público. Há cidades que não exigem projeto assinado por profissional engenheiro ou arquiteto para a realização de calçadas. O resultado é esse que vivemos em nosso dia a dia.

Não tem mais sentido que os proprietários dos lotes em frente a esse espaço escolham os pisos e mudas que irão “adornar” o caminho dos brasileiros. Trata-se de uma prática que transforma calçadas em locais sem nenhuma garantia de segurança. As prefeituras deveriam prover calçadas confortáveis para suprir as necessidades de todos os cidadãos, independentemente de suas habilidades físicas, pensadas e sinalizadas para garantir não apenas segurança, mas também possibilidades para desfrutar dos mais distintos trajetos de forma prazerosa. Caminhar é a forma mais natural, saudável e econômica de uma pessoa locomover-se. É ter assegurado o direito de acessar áreas de lazer, comércios, parques, restaurantes enfim, viver a sua vida urbana de forma plena, sem restrições.

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Entenda como a mobilidade afeta as cidades e a qualidade de vida

O ano de 2020 marcou uma mudança na forma como os governos estão tratando os espaços livres públicos. Atualmente, a regra é viabilizar o caminhar com uma boa distância entre as pessoas. É difícil, somos seres sociais: gostamos da proximidade física, de trocar ideias, tocar. Mas como um cidadão consegue distanciar-se cerca de cinco passos do outro em cidades cujas calçadas são estreitas? Como é possível em tão curto espaço de tempo modificar o sistema viário com o objetivo de garantir ao cidadão a distância necessária para evitar o contágio?

Prefeitos de cidades como Berlim, Milão, Dublin, New York e Lima criaram extensões ao longo das calçadas com o objetivo de ampliar os espaços disponíveis para a circulação segura de pedestres e ciclistas. Ao excluir áreas de estacionamento de automóveis ou ao eliminar uma das faixas do sistema viário, ampliaram as calçadas utilizando cones, tachões, fitas e tinta no chão, por exemplo. Trata-se do uso de alguns dos instrumentos utilizados pelo urbanismo tático: mudanças rápidas e de baixo custo. Em Paris, a prefeita Anne Hidalgo implementou 650 km de ciclorrotas, enquanto à época o vice-prefeito de Milão, Marco Granelli, iniciou o programa “Ruas Abertas” requalificando e expandindo calçadas e implantando uma malha ciclável e uma rede caminhável em toda a cidade. Em entrevista, ele afirmou que se todos continuassem a dirigir seus carros, não haveria espaço disponível para as pessoas e, por consequência, haveria pouco espaço para a existência de atividades comerciais previstas em ambientes externos, prejudicando o comércio e a economia local. A qualidade de vida do cidadão está diretamente relacionada à qualidade do espaço público que o cerca. Nossas vidas não acontecem apenas dentro dos edifícios. Passear pela cidade sem roteiro pré-determinado, experienciar o prazer de observar lugares e pessoas e sentir o gosto de descobrir novidades em cada esquina é parte da vida pública. Trata-se de civilidade, respeito e consideração para com as pessoas. A cidade é feita para as pessoas.

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