Duas cidades, dois caminhos, um único planeta em jogo: qual futuro escolheremos?

Inspirados em romance de Charles Dickens, textos ‘Bleak House’ e ‘Great Expectations’ apresentam duas visões sobre o futuro a partir de escolhas pautadas na inclusão (ou não) do conceito de descarbonização

A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, nada no rio Sena para demonstrar que o rio está limpo o suficiente para sediar eventos dos Jogos Olímpicos. Fonte: JOEL SAGET/EFE/EPA/POOL MAXPPP OUT

Ao ler os jornais da semana, deparo-me com a imagem da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, nadando no rio Sena e cumprindo sua promessa de despoluir as águas do rio antes dos Jogos Olímpicos de Paris-2024. Confesso que senti uma ponta de inveja da população francesa, que poderá desfrutar de suas margens e águas sem o odor pútrido que, aqui onde moro, é comum nos rios que atravessam não apenas a cidade, mas também o Estado de São Paulo. Gostaria de saber se o atual prefeito Ricardo Nunes e o governador Tarcísio de Freitas teriam coragem de mergulhar nas águas dos Rios Tietê e Pinheiros, mostrando à população seus esforços para melhorar a qualidade de suas águas. Os esforços para despoluir o rio Sena começaram na década de 1990, com o “Plano Azul” de 1995 como marco importante, a partir da implementação de estações de tratamento de esgoto e regulamentações ambientais, melhorando significativamente a qualidade da água e permitindo, de certa forma, o cumprimento da promessa. Ações proativas vindas de governos são sempre bem-vindas. A existência de planos, por si só, é incapaz de garantir que os objetivos sejam alcançados sem a execução eficaz e o compromisso contínuo com a sustentabilidade. É a ação concreta e a monitorização constante que transformam as promessas em realidades tangíveis, como a melhoria visível do Sena e a possibilidade de eventos simbólicos como a natação da prefeita de Paris. A coluna de hoje apresenta dois contos que mostram como o futuro das cidades depende da qualidade das decisões governamentais a curto, longo e médio prazos.

Inspirados no romance “Um Conto de Duas Cidades” (1859), de Charles Dickens, os textos “Bleak House” e “Great Expectations“, extraídos da publicação “Cities, Towns & Renewable Energy: Yes In my front Yard” (2009), da Agência Internacional de Energia/Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (IEA/OECD), estabelecem uma analogia com a obra citada para evidenciar duas visões contrastantes sobre o futuro das cidades a partir de escolhas pautadas na inclusão (ou não) do conceito de descarbonização no processo de gestão urbana a longo prazo. Ao divergir sobre as políticas públicas adotadas por governos acerca da gestão da matriz energética vigente e seus impactos ambientais e econômicos sobre a vida do cidadão, os contos apontam cenários ficcionais sobre a importância das decisões políticas e tecnológicas na definição do futuro que se pretende alcançar. A escolha entre continuar com práticas de “business-as-usual” (mantem-se as rotinas) ou adotar uma abordagem inovadora e sustentável determinará a qualidade de vida, a prosperidade econômica e a resiliência das cidades nas próximas décadas.

https://csync-global.smartadserver.com/3356/CookieSync.html

Os contos, adaptados para essa coluna, apresentam um breve resumo de cada cenário. Mobilidade sustentável, economia circular, infraestrutura verde, equidade espacial, resiliência e segurança, valorização das comunidades e grupos sociais, transparência em todos os setores da governança pública, acessibilidade universal são alguns dos temas centrais que definem as visões contrastantes apresentadas. Em “Bleak House,” o cenário é sombrio, refletindo uma realidade onde as cidades falham em adotar políticas inovadoras, resultando em ambientes degradados, desigualdade exacerbada e colapso econômico. Já em “Great Expectations,” a narrativa nos transporta para um futuro otimista, onde as cidades prosperam graças à implementação de tecnologias limpas, práticas de sustentabilidade e um forte compromisso com a justiça social.

Esses contos funcionam como um alerta e uma inspiração, destacando que o caminho que escolhermos hoje moldará profundamente as cidades de amanhã. Através de suas narrativas, eles nos convidam a refletir sobre a responsabilidade coletiva e a importância de decisões políticas e tecnológicas corajosas e bem informadas para construir um futuro urbano resiliente, justo e sustentável. O spoiler, desculpem leitores, pode ter antecipado parcialmente as narrativas. Tanto o documento técnico de 2009 quanto o romance valem a leitura.

Um conto de duas cidades

Em um futuro não tão distante, duas cidades se erguem como símbolos de destinos opostos. A primeira, Bleak House (Casa Sombria, ou talvez, numa tradução ‘ainda mais livre’, Cidade Desolada), sufocada pela fumaça dos combustíveis fósseis, agoniza sob um céu escurecido pela negligência climática. Seus habitantes, reféns de um passado que se recusa a morrer, enfrentam um futuro incerto e sombrio. Mas em outro canto do mundo, uma cidade radiante se destaca: Great Expectations (Grandes Esperanças, numa tradução livre), um farol de esperança alimentado por tecnologias limpas e mentes visionárias. Lá, o ar é puro, a energia abundante e o futuro, promissor. 

Cenário: Bleak House

No primeiro conto, a cidade de Bleak House é apresentada em diferentes épocas, destacando as implicações na qualidade de vida da população decorrentes das decisões políticas ao longo do tempo. Em 2012, decisões reacionárias às pesquisas sobre os impactos econômicos e climáticos futuros levaram à manutenção dos investimentos em fontes não renováveis como carvão, gás e petróleo. A visão imediatista proveniente de políticos eleitos pela população, associada à ganância de setores econômicos e empresariais, sobrepôs-se às questões ambientais e sociais de longo prazo.

Os impactos previstos pela ciência na década anterior, aconteceu. Em 2030, a cidade sofre sob um calor implacável. Jay, um engenheiro experiente, acostumou-se aos cortes de energia e ao calor sufocante em seu escritório. A energia insuficiente obriga a concessionária a desligar aparelhos periodicamente. O prédio moderno, outrora símbolo de progresso, tornou-se um forno no verão e um refrigerador no inverno, devido à falta de investimentos em eficiência energética. O trânsito caótico, agravado pela frota de carros movidos a combustíveis fósseis, dificulta a vida de todos. Enquanto isso, o governo mantém a política de “business as usual”, ignorando os alertas sobre mudanças climáticas e a necessidade de diversificar a matriz energética.

As consequências dessa inércia eram visíveis por toda parte. Temperaturas extremas e inundações frequentes forçavam a população a se adaptar. Impostos extras financiavam obras de contenção, enquanto áreas verdes desapareciam para dar lugar a diques e barreiras. As usinas termelétricas, principal fonte de energia da cidade, sofriam com a falta de água para resfriamento, agravando a crise energética. Em 2050, a cidade ainda carregava as marcas da negligência do passado. Edifícios antigos, como o de Jay, recebiam melhorias, como painéis solares, mas a um custo alto. As novas gerações, representadas pelos netos de Jay, cresciam em um ambiente marcado pela escassez e incerteza, mas também pela esperança de um futuro mais sustentável. A cidade lutava para se adaptar a um clima hostil e a um futuro incerto, resultado de décadas de decisões políticas equivocadas relacionadas à energia não renovável.

Cenário: Great Expectations

No segundo conto, a aprovação pelo Conselho Municipal do Plano Distrital em 2012 garantiu a transição energética futura. Todos os novos edifícios comerciais passaram a ser equipados com aquecedores solares de água, salvo exceções justificadas. Arquitetos integraram painéis solares nos telhados, seguindo diretrizes rigorosas para captar calor solar no inverno, proporcionar sombra no verão e beneficiar-se de ventilação e luz natural. Isso aumentou o custo inicial em cerca de 7%, mas os crescentes preços da energia rapidamente compensaram o investimento. Joy, recém-formada em energia sustentável e design de edifícios, explicava a outros proprietários os benefícios da eficiência energética, auditava edifícios para identificar economias potenciais e desenvolvia planos estratégicos. Os cidadãos utilizavam dispositivos que informavam os assentos disponíveis no próximo ônibus. Ao sair do trabalho, Joy acionava um botão de “dormir”, desligando todos os aparelhos do escritório, e observava as turbinas eólicas nas colinas a caminho de casa.

Em 2030, as ações que Joy possuía nas cooperativas eólicas locais pagavam dividendos suficientes para ela viajar ao exterior. Passagens aéreas haviam aumentado devido ao imposto internacional de carbono, mas eram parcialmente compensadas por biocombustíveis de segunda geração. Em 2050, sua sobrinha chegou dirigindo um carro elétrico com revestimento de coletores solares orgânicos, conectando-o ao sistema de energia da residência para uma recarga rápida. Joy sabia que o futuro da energia sustentável dependia de tecnologias avançadas e colaboração entre cidadãos e governos. Ela se orgulhava de fazer parte dessa transformação e estava otimista quanto ao futuro de sua família em um mundo mais limpo e eficiente.

Escolhendo entre dois futuros

Ao comparar os cenários Bleak House e Great Expectations, fica claro que as escolhas políticas que fazemos hoje, em especial no período de eleições, determinarão não apenas o futuro de nossas cidades e de nosso planeta, mas também nossas vidas em alguns anos. Os contos ressaltam a importância de decisões políticas e tecnológicas conscientes e inovadoras, destacando que um futuro sustentável e próspero é possível, mas exige ação imediata e colaboração entre todos os setores da sociedade. O documento técnico de 2009 é uma leitura valiosa que nos inspira a refletir e agir em prol do nosso futuro e de todos aqueles que virão depois de nos.

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou no Instagram: @helenadegreas

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

Feios, sujos e maltratados: por que grande parte dos rios urbanos estão em condições tão degradantes?

Exemplos mostram que investimentos públicos em saneamento básico têm retornos imediatos na saúde e na qualidade de vida do cidadão

  • Por Helena Degreas
  • 16/02/2021 09h00 – Atualizado em 16/02/2021 09h21

Helena Degreas/Jovem PanCórrego na cidade de São Paulo que deságua no rio Tietê

Em algum momento você já deve ter passado próximo a um córrego malcheiroso, com as margens ocupadas por habitações subnormais e repleto de entulho boiando em suas águas escuras e lodacentas. Por que a água doce, líquido tão precioso, bem natural indispensável à existência humana, é tratado desta maneira? Não é possível considerar natural e tampouco aceitável viver em cidades cujos rios e córregos encontram-se em condições de abandono e degradação. Mas por que isso ocorre? Muitas das formas como as cidades tratam seus rios vêm mudando ao longo das últimas décadas à medida que somos forçados a encarar as consequências de políticas públicas alheias às questões ambientais e de ocupação irregular do solo urbano. Trata-se de uma reflexão sobre a maneira como se dá o processo de urbanização brasileiro e o enfrentamento das questões globais sobre saneamento e riscos à saúde da população. A resposta para a questão do cheiro horrível que exala das águas dos nossos rios está diretamente relacionada às questões de ausência de saneamento básico. É uma situação grave pois, para além do cheiro ruim, as condições das águas afetam diretamente a saúde da população e a qualidade de vida urbana. 

Embora direito assegurado pela Constituição e definido pela Lei nº. 11.445/2007, apenas a metade da população brasileira tem coleta de esgoto. Dito de outra forma, são cidadãos brasileiros que, além de não terem coleta e tratamento de esgoto, também não têm o lixo de suas casas e de suas ruas recolhido, tratado e encaminhado para instalações de manejo de resíduos sólidos como aterros sanitários. Isso mesmo: mais de 100 milhões de brasileiros não têm, por exemplo, onde deixar o lixo gerado em suas casas. O que fazer com ele? Deixar acumular? Jogar nas águas dos rios? O que esperam os gestores de nossas cidade e estados?

Relatório divulgado em 2017 pela Agência Nacional de Águas – ANA (antigo Ministério das Cidades, extinto com a edição da Lei Nº 13.844, de 18 de junho de 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro, que, por sinal, não é afeito a questões ambientais e à sustentabilidade do planeta), o Atlas Esgotos – Despoluição de Bacias Hidrográficas, mostrava que 81% (4.490 de 5.570) dos municípios despejam pelo menos 50% do esgoto que produzem diretamente em cursos d’água próximos, sem submetê-los a qualquer trabalho de limpeza. Cerca de 9,1 toneladas de esgoto sanitário são produzidas diariamente. De acordo com o Instituto Trata Brasil, 55% dele não é tratado. É como se 6000 piscinas olímpicas cheias de esgoto fossem lançadas nos rios e córregos de nossas cidades diariamente. Não é difícil entender o porquê da morte dos rios brasileiros. Pelos dados citados, tem-se a impressão de que os rios que atravessam a cidade têm a função de diluir os efluentes residenciais e industriais neles lançados. Tratamento e ligação de esgoto nas residências é fundamental. Mas como realizar esse trabalho se um número significativo de habitações nas cidades brasileiras encontra-se à margem da regulação urbanística? Ainda assim, como convencer proprietários que têm a posse legal a autorizar a ligação para a coleta de esgoto em suas casas se a conta virá mais cara ao final do mês? Saneamento básico associado a políticas habitacionais eficazes andam juntas.

Muitos são os exemplos de rios que atravessam cidades e que, com esforço de governos de países e cidades, requalificaram suas águas para usos ambientais, culturais e recreacionais, incluindo mobilidade e produção de alimentos. Vontade política para realizar obras deste porte são necessárias. Exemplos como os dos rios Reno (AlemanhaSuíça e Holanda), Tâmisa (Londres), Sena (Paris) e Cheonggyecheon (Seul), realizada em menos de dez anos, envolveram esforços conjuntos entre a iniciativa privada, populações e governos para despoluir suas águas e requalificar suas margens. No Brasil, também podemos encontrar exemplos bem sucedidos. Em São Paulo, temos o Parque Linear Banal-Canivete, implantado em 2012 e que está localizado no Jardim Damasceno, zona norte da cidade. Local carente de espaço livres públicos para o uso da população desencadeou uma série de mudanças nas dinâmicas sociais locais, que passaram a utilizar com intensidade suas praças e equipamentos de recreação.

A produção de novos espaços públicos gera encontros comunitários e sociais, contribuindo para a qualidade de vida urbana e interferindo positivamente nas questões ambientais por meio da redução da temperatura, melhoria da qualidade do ar, absorção das águas das chuvas e redução do número de pontos de enchentes, entre outros benefícios. Além dele, está prevista a implantação do Parque Linear do Rio Pinheiros. Este último pretende criar espaços diversificados mesclando usos recreativos e culturais que foram associados à despoluição do rio por meio obras de esgotamento sanitário e requalificação das margens, impactando positivamente na vida da população que reside e trabalha em seu entorno.

Leia também

Prefeitura hostil: quando as intervenções no espaço público mostram que o cidadão não é bem-vindo

Em Belo Horizonte, Minas Gerais, a construção do Parque do Córrego 1° de Maio melhorou a qualidade das águas do córrego e reduziu os riscos de inundações, além de ter proporcionado espaços para o lazer e recreação da população local, que não dispunha de equipamentos urbanos qualificados para esse tipo de uso. Investir em saneamento básico é o mínimo que se espera de um município, de um estado e de um país civilizado. Rios que poderiam abastecer populações não podem ser responsáveis pelo adoecimento dos moradores que encontram-se em suas margens. São espaços livres públicos vegetados e permeáveis que cumprem papel importantíssimo na qualidade de vida urbana e na sustentabilidade urbana.

Tags:
aguaChuvascórregosdespoluiçãoesgotoHelena Degreasmeio ambienteRio PinheirosriosSaneamento Básico

Coluna originalmente publicada aqui