o que estamos perdendo ao priorizar o armazenamento de veículos particulares no meio da cidade em detrimento do espaço que pode ser utilizado pelas pessoas?
- Por Helena Degreas em 17/10/2023 14h55 – Atualizado em 17/10/2023 15h14
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John Matychuk/Unsplash
Ao visitar shopping centers, supermercados ou prédios públicos construídos no século passado, invariavelmente notamos a vastidão dos estacionamentos, extensas áreas pavimentadas que se estendem por hectares
Aguardando no ponto, a chegada do “busão”. São oito paradas até o shopping center onde deixarei meu relógio “cuco” para conserto. Datado de 1940, herança do meu pai, vez ou outra o passarinho emperra, insistindo em não piar a hora certa. Ricota e Chanel não gostam dele. Observam ansiosas o momento em que acidentalmente o pássaro sem penas distraidamente cai ao chão para que, finalmente, possam destroçá-lo. Desço no canteiro central. Entre eu e o shopping, existem alguns obstáculos a vencer: subir pela escada rolante quebrada, percorrer uma ponte coberta, descer pelo elevador ou pela escada para assim, chegando na calçada, deparar-me com um portãozinho extremamente pequeno, que me leva à entrada triunfal do edifício, depois de atravessar uma pista dupla interna destinada à circulação de veículos de carga e descarga. Acesso meu destino. Por dentro, iluminação adequada, ar-condicionado, gente andando de lá para cá freneticamente. Templo de consumo com ausência de identidade. Todos iguais, caixotes de vidro ou concreto, não importa o ornamento externo, têm em comum o fato de armazenarem veículos estacionados em volta de suas instalações. “Para que tanto estacionamento? Não é mais fácil vir de ônibus ou pedir transporte por aplicativo?”, pergunto-me.
Ao visitar shopping centers, supermercados ou prédios públicos construídos no século passado, invariavelmente notamos a vastidão dos estacionamentos, extensas áreas pavimentadas que se estendem por hectares, consumindo terra que poderia ser utilizada para propósitos mais nobres. Essas extensões de concreto comprometem não apenas a paisagem urbana, mas também causam impactos ambientais significativos, pois absorvem calor durante o dia e liberam-no à noite, contribuindo para o fenômeno das “ilhas de calor”, que elevam a temperatura das cidades. Além disso, o escoamento da água da chuva sobre o asfalto também pode causar problemas de drenagem e a contaminação do solo por óleos e outros resíduos de veículos. No Brasil, os shopping centers têm uma forma que remonta aos modelos norte-americanos, frequentemente localizados em áreas suburbanas, uma herança das cidades modernistas. Após a Segunda Guerra Mundial, houve um rápido crescimento dos subúrbios nos Estados Unidos, impulsionado pela busca de residências próprias a preços acessíveis e pelo desenvolvimento de infraestrutura viária, tornando os locais ideais para empreendimentos com grandes estacionamentos.
O princípio subjacente a essa abordagem é fortemente influenciado pelo “zoning“, que exigia a construção de estacionamentos em novos empreendimentos comerciais e residenciais, refletindo a dependência do carro, uma característica marcante da cultura estadunidense. Para quem assiste filmes e seriados de TV que mostram o estilo de vida nos Estados Unidos, “Desperate Housewives” e “American Beauty” são exemplos que retratam as vidas cotidianas e famílias que moram em bairros onde as casas são construídas em lotes individuais, com quintais espaçosos, gramados imensos e, em alguns casos, garagens anexas. São comunidades planejadas que podem incluir áreas verdes, instalações comunitárias, escolas e shoppings centers para aqueles dependentes de carro. Em contraste com a cultura europeia, que valoriza a criação de galerias e espaços públicos de qualidade em áreas centrais adensadas, nossas cidades optaram por acolher, inexplicavelmente, um modelo de projeto inadequado para áreas urbanas com farta infraestrutura e equipamentos públicos implantados. Enquanto isso, automóveis permanecem estáticos nos vastos estacionamentos. Ao contrário de pessoas, os carros não frequentam escolas, postos de saúde, acessam transporte público, recorrem a delegacias, exploram bibliotecas ou aproveitam o acesso à água, esgoto e energia elétrica. Pedaços de cidade inteiros armazenam automóveis enquanto aqueles que residem nas regiões periféricas dos centros urbanos são excluídas do acesso aos serviços públicos essenciais e que deveriam estar ao alcance de todos.
Nos últimos anos, a visão do urbanismo vem destacando a importância dos espaços livres qualificados, ou ainda, projetados para o uso público urbano e ambiental, especialmente nas áreas centrais das cidades. Parques, praças e espaços de convívio construídos em propriedades privadas, promovem a atividade física, a interação social e colaboram na redução do estresse. Incontáveis, seus benefícios levam à promoção da saúde e do bem-estar até a construção de comunidades mais fortes e unidas como venho sistematicamente abordando em minhas colunas. São locais de encontro, celebração e diálogo. São os lugares onde a diversidade da cidade se encontra e se mistura, criando um senso de pertencimento e identidade compartilhada. No entanto, muitas vezes, essas áreas são relegadas a segundo plano pelos empreendedores do mercado imobiliário voltado à criação de shoppings, supermercados e até pelas prefeituras locais. Não raro é encontrar prédios de secretarias, assembleias, departamentos diversos voltados ao atendimento da burocracia pública cercados de estacionamentos e inseridos em ambientes urbanos onde o transporte público é capaz de atender com qualidade seus colaboradores. O poder público e seus agentes, que deveriam dar o exemplo, eximem-se da responsabilidade de dar destinação adequada aos espaços ociosos ou que servem exclusivamente aos proprietários de carros.
A requalificação de áreas urbanas em benefício do espaço público não significa o fim dos carros ou da conveniência. Pelo contrário, representa uma oportunidade de repensar a alocação dos espaços e buscar um equilíbrio entre mobilidade, meio ambiente e qualidade de vida. Os estacionamentos ainda têm seu papel, mas é fundamental que empresas, sociedade e governos priorizem a criação de espaços urbanos de qualidade e que beneficiem a todos. Faz-se necessária a revisão das regulamentações urbanas e a eventual taxação para áreas de estacionamento a céu aberto em locais intraurbanos, pois não tem sentido algum que todos paguem por uma infraestrutura pública ociosa. À medida que exploramos alternativas para o futuro, é essencial considerar o potencial das áreas atualmente dominadas por veículos. A redefinição do espaço urbano, priorizando as pessoas em detrimento dos veículos, é essencial para uma cidade mais sustentável e habitável. Além disso, exemplos inspiradores de transformações urbanas centradas nas pessoas, como Medellín, Copenhague, Paris e Singapura, mostram que é possível criar ambientes urbanos mais humanos, saudáveis e vibrantes utilizando investimentos voltados para a ampliação da mobilidade ativa, do transporte de qualidade e do adensamento urbano por meio de políticas habitacionais que incentivem a diversidade social, além da retirada do asfalto para fins de permeabilização urbana. O desafio do planejamento urbano contemporâneo reside na conciliação das duas visões: a modernista e a pós-moderna, em uma abordagem integrada que repense o uso de áreas urbanas.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan